Principais Descobertas
- As maiores marcas de moda do mundo, H&M and Zara, usam algodão ligado a grilagem de terras, desmatamento ilegal, violência, violações de direitos humanos e corrupção no Brasil.
- O algodão é cultivado no oeste da Bahia por dois dos maiores representantes do agronegócios do Brasil – SLC Agrícola e Grupo Horita. A região faz parte do precioso bioma do Cerrado e vem sendo fortemente desmatado ao longo das últimas décadas para dar lugar à agricultura em escala industrial.
- Ao contrário da Amazônia, o desmatamento no Cerrado está piorando. O bioma abriga 5% das espécies do mundo. Muitas estão ameaçadas de extinção devido à perda de habitat caso o ritmo de destruição não seja revertido.
- Por gerações, as comunidades tradicionais viveram em harmonia com a natureza. No entanto, mais recentemente, essas comunidades estão vendo suas terras serem roubadas e vem sofrendo ataques de produtores gananciosos apenas interessados nos mercados globais de algodão.
- O algodão contaminado nas cadeias de suprimento da H&M e da Zara é certificado como ético pelo maior esquema de certificação de algodão do mundo, o Better Cotton, que não conseguiu detectar as ilegalidades cometidas pela SLC e pelo Grupo Horita. As falhas profundas da Better Cotton tampouco serão resolvidas com a atualização recente de suas normas.
- O fracasso do setor de moda em monitorar e garantir a sustentabilidade e a legalidade em suas cadeias de suprimento de algodão significa que os governos dos mercados consumidores ricos precisam regulamentar tais cadeias. Uma vez regulamentado, esse conjunto de regras deve ser rigorosamente implementado.
Crimes na Moda foi publicado em 11 de abril de 2024
Capítulo 1:
A chegada do Agronegócio
Um bioma precioso
Às margens das veredas11, tucumãs e buritis dividem o espaço atraindo tucanos e araras azuis, que se alimentam de seus frutos arredondados. A vegetação também inclui barbatimão, mangaba e sucupira, conhecidas pelos moradores locais por suas propriedades medicinais e usadas para tratar desde inflamações e infecções até diabetes. Além das veredas, o mosaico de paisagens inclui savanas, áreas alagadas, campos e matas.
Este é o Cerrado brasileiro. Apesar da imensa beleza de seus planaltos, escarpas e vales, e sua importância para inúmeras espécies, o Cerrado não é tão conhecido quanto a Amazônia. Ocupando quase 25% do território brasileiro, uma área do tamanho do México, é o segundo maior bioma do país.12 O Cerrado é lar de 5% das espécies do mundo (incluindo tatu-canastra, anta, lobo-guará, onça-pintada, ema e seriema) e um terço da biodiversidade do Brasil13. Esse bioma é conhecido como o berço das águas devido ao seu papel crucial na manutenção de vários dos principais rios brasileiros e sul-americanos.14
Nas últimas décadas, o Cerrado perdeu mais da metade de sua vegetação nativa para a agricultura em grande escala.15 “Costuma-se dizer que o Cerrado pode ser sacrificado para que o agronegócio possa se expandir sem ameaçar a Amazônia” 16, conta André Sacramento, Coordenador da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR). Ele acrescenta: “O Cerrado, porém, é essencial para a preservação da própria Amazônia.” E de fato, importantes rios amazônicos (Xingu, Madeira, Trombetas) nascem no Cerrado.17
Dentro da vasta área coberta pelo Cerrado fica a região oeste do estado da Bahia. Comunidades de geraizeiros habitam o oeste baiano há gerações.18 Até hoje, esses geraizeiros conservam um modo de vida tradicional e de baixo impacto. Eles coletam frutas e plantas medicinais, praticam cultivos tradicionais – como mandioca, feijão e abóbora – e criam seu gado em pastagens naturais.19 Quando a vida selvagem ainda era abundante e os rios eram limpos, eles podiam caçar e pescar.
Algumas dessas comunidades existem há mais de 200 anos. Muitas delas começaram com grupos de escravos fugidos, camponeses ou qualquer um que quisesse ou precisasse escapar da sociedade dominante.20
As comunidades identificadas como de fundo e fecho de pasto no município de Correntina, ao sul de Formosa do Rio Preto, na Bahia, possuem um modo de vida semelhante. Na comunidade do Capão do Modesto, cerca de 80 famílias tentam viver como seus antepassados. As casas não estão ligadas à rede elétrica e o acesso à internet é instável e só está disponível via satélite.
Na comunidade vizinha de Pedrinhas, Bernardino Alves Barbosa, 37 anos, confirma que o local é ocupado há muito tempo. “Meu avô, que faleceu em 2021, aos 97 anos, era nascido e criado aqui. No tempo dele, o povo criava muito gado solto por aqui. Apanhavam pequi, cascudo, caju, mangaba. Sempre vivemos em harmonia (com a natureza),” 21 afirma.
“Costuma-se dizer que o Cerrado pode ser sacrificado para que o agronegócio possa se expandir sem ameaçar a Amazônia.”
André Sacramento
Coordenador da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR)
Expropriação e desmatamento
Essa convivência harmoniosa vem sendo duramente afetada nas últimas décadas. Desde 1985, a Bahia perdeu quase um quarto dos seus 9 milhões de hectares originais de Cerrado para a agricultura industrial.22 A expansão agressiva do agronegócio está reduzindo o habitat e ameaçando a sobrevivência de um quinto das espécies do Cerrado, incluindo o lobo-guará e o tatu-canastra.23 As comunidades tradicionais e as espécies silvestres estão sob pressão da monocultura, da extração insustentável de água e da poluição dos agrotóxicos.
Espera-se que o nível de água dos principais rios do Cerrado baixe um terço até 2050, devido principalmente ao desmatamento e à exploração predatória, principalmente pelas sedentas monoculturas de algodão.24 O algodão utiliza mais agrotóxicos que qualquer outra cultura, o que causa poluição do solo e das fontes de água.25 A esses impactos ambientais soma-se o fato de que a produção de algodão e tecidos é responsável pela elevação das emissões de gases de efeito estufa.26 Algumas estimativas dizem que a indústria têxtil global tem uma pegada de carbono semelhante à de todos os Estados-Membros da UE juntos.27
Uma mistura desastrosa de políticas oficiais, corrupção, ganância, violência e impunidade expôs o oeste baiano ao avanço do agronegócio em escala industrial, movido a grilagem flagrante de terras públicas, expropriação de comunidades tradicionais e desmatamento.
No final da década de 1970, grileiros viram uma oportunidade de ouro no oeste da Bahia, historicamente visto como uma região de “terras improdutivas”.28 A ditadura militar queria avidamente promover o “desenvolvimento” agrícola de vastas extensões do território brasileiro para, entre outras coisas, impedir que “células comunistas” reais ou imaginárias se estabelecessem em regiões remotas.29 Os custos ambientais, humanos e jurídicos de tal política foram ignorados ou banalizados.
Por meio de esquemas fraudulentos, grileiros começaram a privatizar ilegalmente centenas de milhares de hectares de terras públicas – pertencentes ao estado e ao povo da Bahia – incluindo as que estavam sob uso coletivo de comunidades tradicionais.30
Sob pressão de grileiros violentos, muitas famílias foram forçadas a fugir. “Quando o grileiro chegava, às vezes ele conquistava a população local pagando uma ninharia pela terra. Mas, muitas vezes, ele simplesmente contratava um pistoleiro, botava fogo nas casas ou ameaçava e matava moradores antes de assumir o controle da área”,31 conta o ambientalista e ativista local Marcos Rogério Beltrão dos Santos.
Os primeiros grileiros abriram caminho para ondas posteriores de fraudadores, que tampouco tiveram escrúpulos na hora de transformar terras públicas roubadas, repletas de vida selvagem, em vastas monoculturas.32
O Prodecer, um programa de “desenvolvimento” que recebeu quase 700 milhões de dólares do governo japonês entre 1985 e 1990, 33 ajudou o agronegócio a adquirir terras aráveis de baixo custo e a ter acesso a técnicas modernas de cultivo, principalmente para a produção de soja. O algodão, hoje cultivado em rodízio com a soja pela maioria dos grandes grupos empresariais da região, foi introduzido no oeste baiano na virada do século XX para o século XXI.34
O entusiasmo dos governos federal e estadual pela expansão do agronegócio foi estimulado pela negligência da Bahia em relação às suas responsabilidades para com o meio ambiente e as comunidades tradicionais. De acordo com a Constituição estadual de 1989, o governo do estado teve três anos para mapear todas as terras públicas e garantir que fossem preservadas, assegurando que as comunidades recebessem direitos sobre seus territórios tradicionais.35 Esse processo não foi concluído até hoje.
“Se o governo recuperasse todas as terras públicas no oeste da Bahia, não sobraria nenhuma fazenda porque todas receberam seus títulos de forma fraudulenta”, acrescenta Santos.36 A omissão do estado também viola a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.37 Em termos de gestão ambiental, o governo da Bahia tolerou os piores abusos e permitiu que o Cerrado fosse loteado pelo agronegócio.38
Feitos de forma artesanal por moradores locais há gerações, produtos como polpa de pequi, óleo de buriti e cordas de tucumã hoje são escassos devido ao desaparecimento de espécies nativas. “Minha avó, minhas tias e eu colhíamos tucumã no morro para fazer corda. É um tipo de palmeira. Quando o desmatamento chegou, o tucumã sumiu, ninguém acha mais”39, diz Catarina Lopes Leite, 63 anos, moradora da comunidade Cachoeira, em Formosa do Rio Preto.
Dois gigantes do algodão estão devorando o Cerrado
Para este relatório, a Earthsight se concentrou em dois estudos de caso de grilagem de terras e desmatamento no oeste da Bahia, um no norte e outro no sul, e nos dois gigantes do agronegócio responsáveis por eles.
Os casos são Estrondo e Capão do Modesto, ou simplesmente Capão. As empresas são o Grupo Horita e a SLC Agrícola.
As ações dessas empresas no oeste da Bahia não são casos isolados. Na verdade, são casos emblemáticos do agronegócio em escala industrial para fins de exportação que está devastando o Cerrado e suas comunidades tradicionais. Um estudo descobriu que, em 2020, 99% do desmatamento no Cerrado foi ilegal, sendo que a maior parte dessa destruição foi causada por latifúndios que representam apenas 1% de todas as propriedades rurais.40 A especulação imobiliária, o fracasso do Estado em demarcar e proteger terras públicas e o apoio quase incondicional do governo baiano à expansão do agronegócio resultaram na grilagem generalizada de terras e na perda de vegetação nativa.41
O vilarejo de Cachoeira, onde vive Dona Catarina, e outras seis comunidades se agrupam em uma área de 82 mil hectares, uma pequena fração das centenas de milhares de hectares que ocupavam apenas quatro décadas atrás. Grande parte de suas terras tradicionais foi tomada por uma imensa fazenda chamada Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo.42 Ali, dezenas de empresas dedicadas ao agronegócio hoje cultivam soja, algodão e milho em um planalto, chamado de chapada, que já foi coberto de mata e era usado para caça de subsistência pelas comunidades de geraizeiros.
A propriedade atualmente ocupa 320 mil hectares,43 uma área quase quatro vezes maior que a cidade de Nova York,44 que inclui não apenas a chapada desmatada, mas também os vales circundantes ainda habitados pelas comunidades de geraizeiros. Implicado em desmatamento ilegal, violência armada, corrupção e condições de trabalho análogas à escravidão, o projeto foi apontado como um dos casos mais emblemáticos de grilagem de terras no Brasil.45, 46
O maior produtor de algodão e soja na Estrondo é o Grupo Horita.47 Originários do estado do Paraná, os irmãos Walter, Ricardo e Wilson Horita chegaram à Bahia em 1984. Após adquirir inicialmente 1.200 hectares de terras agrícolas, hoje o Grupo Horita possui pelo menos 140 mil hectares de terras espalhadas por seis municípios do oeste baiano.48
A empresa é a sexta maior produtora de algodão do Brasil49, com uma produção estimada de 180 mil toneladas na safra 2022-23.50 O Grupo Horita exporta 70% do algodão que colhe.51 Os Horita estão supostamente entre as famílias mais ricas do Brasil.52 Eles plantam algodão, soja e outras culturas em aproximadamente um terço da Estrondo, ou cerca de 100 mil hectares.53
Outro importante ator no centro desta investigação sobre o oeste da Bahia, a SLC Agrícola, é o maior produtor de algodão do Brasil.54 A empresa chegou à região no início dos anos 2000 e hoje está presente em seis munícipios, onde cultiva 147 mil hectares, dos quais 44 mil são de algodão.55
A SLC está sediada no Rio Grande do Sul e pertence à família Logemann, uma das mais ricas do país, com bens avaliados em mais de R$ 7,2 bilhões (US$ 1,4 bilhão).56 O grupo, com lucro líquido superior a R$ 1 bilhão (US$ 271 milhões) em 2022,57 também possui propriedades em outros cinco estados brasileiros, todas no bioma do Cerrado.58
A SLC foi apontada como uma das maiores desmatadoras no Cerrado.59 O Fundo Estatal de Pensões da Noruega se desfez de seus investimentos na SLC há alguns anos devido às ligações da empresa com o desmatamento.60 A empresa foi muitas vezes associada por ONGs ao desmatamento irresponsável no Brasil.61
Como este relatório mostrará, o Grupo Horita e a SLC estão ligados à grilagem de terras e à violência contra a comunidade do Capão do Modesto, em Correntina. Órgãos ambientais acusaram as duasempresas de desmatamento ilegal no oeste da Bahia.62 Enquanto isso, Walter Horita esteve envolvido em um dos escândalos de corrupção mais chocantes da história recente do Brasil.
A SLC Agrícola e o Grupo Horita ilustram bem os terríveis impactos ambientais e humanos que os grandes produtores de commodities têm causado no oeste da Bahia. Os detalhes dos seus crimes na região deveriam chocar qualquer pessoa que considere fazer negócios com essas empresas. No entanto, o algodão produzido por elas é amplamente comercializado no mercado internacional, por grandes marcas globais. A indústria da moda é cúmplice dessas transgressões, e seu fracasso em assumir suas responsabilidades está ficando cada vez mais evidente.
Capítulo 2:
Grilagem, violência e corrupção
Estrondo: a grilagem de 4.000 km2 de terras
“No começo, a gente ouviu o barulho de máquinas. Com questão de tempo eles foram avançando, aumentando as lavouras, construíram várias sedes e o desmatamento foi crescendo.”63 Jossone Lopes, morador de Cachoeira, lembra quando os primeiros fazendeiros chegaram. As plantações e casas que ele menciona fazem parte do que passou a ser chamado de Estrondo.
Foi um processo corrupto e ilegal desde o início.64
Em junho de 1981, uma empresa chamada Delfin Rio comprou uma propriedade de 405 mil hectares na Bahia.65 Cobrindo uma grande área do rico bioma do Cerrado, a propriedade era maior que a ilha de Long Island, em Nova York. A Delfin Rio posteriormente registrou o terreno como Agronegócio Condomínio Cachoeira do Estrondo – ou simplesmente 'Estrondo'.66 Essa aquisição pode ser considerada suspeita por vários motivos. O título de propriedade daquelas terras não faz nenhuma referência àcadeia sucessória67 – algo ilegal, segundo a lei brasileira.68 Além disso, o número do título de terra da propriedade adquirida pela Delfin também não corresponde ao título registrado pela empresa da qual a Delfin comprou o terreno – outro sinal de alerta importante.69
O número do título de terra precisam ser mantidos mesmo quando a propriedade muda de mãos.70 Alterações nesses números são vistas como forte indício de fraude. “Foi assim que surgiram esses títulos de terra falsos nas décadas de 1970 e 1980”,71 explica André Sacramento, advogado da Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais (AATR). Uma análise mais aprofundada feita pelo Ministério Público da Bahia (MPBA) revelou outras irregularidades associadas ao título dessas terras, incluindo a falta de dimensões ou limites registrados. Segundo o MPBA, tudo isso sugere “ilegalidade flagrante”.72, 73
A Estrondo começou como uma grande fazenda de propriedade da Delfin Rio. Com o passar do tempo, diferentes empresas do agronegócio arrendaram ou compraram terrenos dentro da Estrondo, criando um complexo quebra-cabeça de diferentes atores explorando a área. “Quando a gente fala no condomínio Estrondo, parece que é apenas uma empresa. E a realidade não é essa. Estão reunidas dezenas de propriedades rurais ”, explica o procurador Eduardo Bittencourt. No entanto, a Estrondo manteve uma estrutura administrativa central responsável pela gestão de determinados aspectos da fazenda como um todo.74 Essa é a 'Estrondo' que apresentou seus comentários à Earthsight, conforme destacado abaixo.
Bittencourt conhece bem a Estrondo. Em 2012, o MPBA abriu um inquérito civil público para coletar provas sobre a grilagem de terras e o conflito com as comunidades locais de geraizeiros. “Em primeiro lugar, queremos garantir a proteção dos territórios das comunidades”, afirma.75
Existem 365 títulos de terra diferentes dentro da propriedade, hoje "reduzida" a 320 mil hectares.76 Mas uma coisa que todos os seus detentores têm em comum – além de título de posse questionáveis77 – é uma atitude agressiva para com as comunidades de cujas terras eles se apropriaram.
Assédio e intimidação
Há mais de 10 anos, as comunidades começaram a sofrer intimidação e assédio por parte de homens armados que supostamente trabalhavam para os fazendeiros. Em diversas ocasiões, o gado dos moradores foi ferido ou simplesmente desapareceu.78 Os proprietários e funcionários da Estrondo impuseram uma série de medidas para cercear os movimentos e atividades dos geraizeiros, sobretudo a passagem de seu gado pelos vales adjacentes: foram instalados postos de controle com homens armados, cercas em volta das casas das comunidades, e valas profundas foram cavadas por todo o seu território.79 O objetivo era manter os geraizeiros fora da 'propriedade da Estrondo'.80 Em seguida, veio a criminalização. Alguns membros da comunidade tiveram as suas casas revistadas pela polícia sem mandado.81 Outros foram detidos e levados para a delegacia.82
Todavia, a tentativa da Estrondo de confinar os geraizeiros a pequenas áreas e limitar suas atividades tradicionais não está diretamente ligada a nenhum plano para transformar os vales e veredas das comunidades em plantações. Na verdade, há tempos que a Estrondo tem outra coisa em mente para estes locais bem preservados.
O Código Florestal Brasileiro exige que todas as propriedades rurais do Cerrado preservem pelo menos 20% de sua área total.83 Essas áreas de habitat protegido são conhecidas como reservas legais. Contrariando o espírito, senão a letra, desta lei, e para permitir o desmatamento de toda a sua área produtiva, o agronegócio começou a designar os vales das comunidades – que também apareciam na área reivindicada pela Estrondo – como suas reservas legais. A Estrondo reivindicou mais de 50 mil hectares de terras comunitárias para tais fins.84 Assim funciona a conversão sistemática de terras comunitárias em reservas legais, eliminando abruptamente os direitos de que essas comunidades desfrutaram durante gerações. Só o Grupo Horita detém mais de 22 mil hectares de reservas legais na Estrondo, parte dos quais se sobrepõe aos locais habitados pelas comunidades.85
A manobra tem sido utilizada em todo o oeste baiano e ficou conhecida como “grilagem verde". “É uma área que, aos olhos dos fazendeiros, está ali preservada, pronta para ser convertida em reserva legal. Só que nessa área vivem as comunidades.",86 explica Sacramento. A imposição de reservas legais sobre suas terras impede que as famílias exerçam atividades de subsistência e até mesmo que permaneçam nas terras.87 Essa situação viola os seus direitos e ameaça a sua existência. Também permite que os gigantes do agronegócio desmatem extensões muito maiores de terras que, de outra forma, deveriam ser preservadas.
Mas as comunidades reagiram. Em abril de 2017, moveram uma ação contra a Estrondo contestando a titularidade de suas terras e denunciando as violações sofridas desde 2011. No mês seguinte, um juiz decidiu que as comunidades tinham o direito de usufruir plenamente dos seus territórios tradicionais.88 No ano seguinte, o governo da Bahia reconheceu os direitos das comunidades sobre 82.775 hectares de terra.89 Uma área do tamanho de Manhattan, de um total do tamanho de Long Island, precisaria ser novamente disponibilizada às comunidades de forma integral.
A reação do agronegócio foi rápida. A Estrondo cavou uma trincheira com quase três quilômetros de extensão nas terras das comunidades para impedir a movimentação de moradores e rebanhos.90 Em fevereiro de 2019, Jossone Lopes, membro da comunidade, foi baleado por seguranças que trabalhavam para a Estrondo. Ele foi atingido na perna esquerda ao tentar recuperar gado confiscado pelos seguranças, mas conseguiu escapar com a ajuda de seus companheiros.91 Foi só em dezembro de 2019 que os postos de guarda da Estrondo nos vales das comunidades foram finalmente desativados.
De forma surpreendente, depois de anos fazendo vista grossa, as autoridades da Bahia por fim decidiram agir. Em outubro de 2018, a Procuradoria-Geral do Estado da Bahia abriu ação contra a Estrondo para recuperar as terras para o estado. Em processo judicial de 2021, o procurador-geral concluiu que os títulos de propriedade da Estrondo apresentavam evidências claras de ilegalidades.92 Fazendo referência aos terrenos que acabaram por compor a Estrondo, ele argumentou: “Como num passe de mágica, [os grileiros] conseguiram a incrível façanha de transformar 36 mil hectares na fantástica soma de 382.354 hectares.”93 O processo está em andamento.
Em carta enviada à Earthsight, a Estrondo disse que o uso de todas as terras da propriedade é legal e que nunca houve grilagem. Afirmou ainda que tentou chegar a um acordo “definitivo, equilibrado e justo” com as comunidades e os procuradores. A Estrondo negou restringir os movimentos das comunidades e disse que se opõe ao uso da violência. Acusou membros da comunidade de atos criminosos contra suas propriedades e funcionários. Disse também que a propriedade cobre uma área de 205.000 hectares.
Em comentários enviados à Earthsight, o Grupo Horita negou possuir propriedades dentro da Estrondo.94 No entanto, imagens de satélite, títulos de propriedade, documentos judiciais e muitas outras provas vistas pela Earthsight demonstram claramente que o Grupo Horita possui áreas de exploração agrícola dentro da Estrondo.95 O inquérito público do MPBA, por exemplo, nomeia a empresa entre as partes que procuram um acordo sobre o conflito. No dia 10 de agosto de 2022, o MPBA foi contatado por representantes do Grupo Horita solicitando acesso ao inquérito.96
Na ausência de uma solução legal definitiva a respeito da grilagem de terras no caso Estrondo, o promotor Bittencourt persuadiu as comunidades e os fazendeiros a negociarem um acordo de convivência.97 Isso ilustra o fracasso do Estado em pôr fim a décadas de grilagem e lucros ilícitos.
Capão do Modesto: “um dos mais graves casos de grilagem de terras na Bahia”
Na comunidade de fundo e fecho de pasto do Capão do Modesto, 19 propriedades privadas se sobrepõem ao seu território de 11.200 hectares.98 A maior parte dessas terras foi vendida para empresas do agronegócio – para serem usadas como reservas legais “no papel”, permitindo o desmatamento adicional em outros locais – por um casal pobre e analfabeto que assinou os documentos de venda com as impressões digitais.99 Análise produzida pela Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais revelou que o casal teria supostamente herdado 16 mil hectares de terras em 1960, mas não há registros do inventário do falecido nem de que alguém do casal fosse seu herdeiro, o que é uma exigência legal.100 A análise também mostrou que o casal nunca morou na área. Moradores do Capão do Modesto disseram à Earthsight que suspeitam que o casal tenha sido usado como fachada para um esquema de grilagem de terras.101
Outro sinal de alerta são os preços estranhamente baixos que os fazendeiros pagaram pelas terras. Em 2007, Luiz Carlos Bergamaschi, grande cotonicultor do oeste da Bahia, atual presidente da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa)) e proprietário de 14 lotes em Capão do Modesto, adquiriu uma propriedade de 90 hectares por R$ 3.500 (US$ 1.600).102 Isso equivale a menos de R$ 38 (US$ 17) por hectare. Nenhuma de suas 13 propriedades restantes no Capão custou mais que R$ 361 (US$ 166) por hectare.103, 104 As propriedades rurais no oeste da Bahia eram avaliadas na época entre US$ 2.500 e US$ 4.000 por hectare.105 Estudos sugerem que preços excessivamente baixos pagos por terras no Brasil podem ser evidência de grilagem de terras.106
O mesmo fenômeno de grilagem verde observado no caso Estrondo ocorre no Capão do Modesto. Os proprietários de terras não adquiriram propriedades ali para cultivar, mas para indicá-las como reservas legais de fazendas localizadas alhures.107
Não é por acaso que os produtores de algodão estão reivindicando áreas sobrepostas ao Capão do Modesto ou às terras das comunidades em Formosa do Rio Preto como suas reservas legais. Embora a prática seja legal há décadas, a capacidade do agronegócio de localizar reservas legais longe de suas fazendas ganhou ímpeto nos últimos anos, após mudanças no Código Florestal do Brasil e nas leis ambientais da Bahia.108, 109 Grandes proprietários de terras em todo o oeste baiano aproveitaram a oportunidade, que até muito recentemente lhes permitia remover completamente a vegetação nativa de suas fazendas.110
Entretanto, os especialistas entrevistados pela Earthsight são categóricos sobre os danos que isso pode causar: “O Cerrado é formado por vários ecossistemas. Quando fazendas e suas reservas legais estão em áreas diferentes, a preservação dos ecossistemas mais afetados pela agricultura em grande escala – que tende a se concentrar onde os campos costumavam ser mais abundantes – é dificultada. Outro problema grave é que grande parte da atividade do agronegócio no oeste da Bahia está localizada sobre o Urucuia, o maior aquífero do Brasil. Se as reservas legais dessas fazendas estiverem em outro lugar, o aquífero fica impedido de ser reabastecido pelos processos naturais que só a vegetação nativa pode possibilitar”, explica o ambientalista dos Santos.111
Bergamaschi disse à Earthsight que pagou “preços de mercado” por suas propriedades no Capão. Ele negou que elas sejam ilegais ou estejam ligadas à grilagem e enfatizou que todas foram devidamente registradas junto às autoridades competentes.
O presidente da Abapa não é o único grande produtor de algodão implicado em negócios fundiários obscuros no Capão do Modesto. O Grupo Horita também é acusado de grilagem de terras da comunidade.112 Em 2009, o Grupo adquiriu a Fazenda Alegre, uma propriedade de 2.169 hectares no Capão, usada como reserva legal para a Fazenda Sagarana, uma fazenda de algodão a cerca de 150 km de distância.113 A própria Sagarana já foi flagrada cometendo transgressões. Em 2019, o Ibama embargou mais de 250 hectares da fazenda para o cultivo de algodão transgênico na zona tampão de uma área de conservação (o embargo já foi suspenso).114 O Grupo Horita nega que a Fazenda Alegre se sobreponha a terras públicas ou de comunidades tradicionais.
A SLC está igualmente envolvida em acusações de grilagem de terras no Capão. Embora não possua propriedades no local, um terreno no Capão do Modesto conhecido como Tabuleiro VII é a reserva legal das fazendas de algodão e soja que a empresa arrenda mais a oeste.115
Em Correntina, a SLC arrenda um conjunto de fazendas identificadas como Paysandu.
Um terreno no Capão do Modesto conhecido como Tabuleiro VII é usado como reserva legal da fazenda Paysandu.
A ligação é confirmada através do cruzamento de dados e mapas fornecidos pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR) e pelo órgão ambiental da Bahia (Inema) com títulos de propriedade emitidos pelo cartório de Correntina.
A SLC nega que Tabuleiro VII tenha relação com suas fazendas arrendadas.116 Mas as evidências vistas pela Earthsight sugerem o contrário. O cruzamento de dados e mapas fornecidos pelo Cadastro Ambiental Rural (CAR)117 e pelo órgão ambiental da Bahia (Inema)118 com títulos de propriedade emitidos pelo cartório de Correntina119 revela que Tabuleiro VII é de fato a reserva legal de pelo menos sete fazendas arrendadas pela SLC no oeste da Bahia.120
A duvidosa aquisição de terras no Capão por latifundiários e produtores de algodão foi seguida de violência e assédio contra a comunidade. “Eu já fui agredido umas quatro ou cinco vezes dentro da minha própria casa. Toda pessoa estranha que chega, já penso que veio para eliminar a gente”,121 diz Antônio dos Santos Silva, 49 anos, presidente da Associação Comunitária do Capão do Modesto. Silva disse à Earthsight que está sob vigilância constante de homens armados em motocicletas.
Em fevereiro de 2017, Silva foi violentamente atacado em Correntina.122 Os agressores seriam supostamente seguranças contratados por fazendeiros. Moradores do Capão contaram à Earthsight sobre episódios de intimidação, vigilância, restrição de movimento e roubo de gado por pistoleiros.
Há anos, Silva e outros membros da comunidade vêm travando uma tortuosa batalha judicial pelos seus direitos fundiários. Em novembro de 2017, os fazendeiros moveram uma ação de reintegração de posse contra oito moradores do Capão do Modesto.123 Em janeiro de 2018, a juíza Marlise Freire Alvarenga concluiu que os fazendeiros não haviam conseguido comprovar a propriedade legítima da terra. Contudo, em abril daquele ano ela voltou atrás e acatou as alegações dos fazendeiros de que os moradores do Capão do Modesto haviam destruído cercas e estavam pastoreando gado ilegalmente em suas reservas legais.124 Em junho de 2018, porém, o Tribunal de Justiça da Bahia decidiu a favor do Capão e destacou que os modos de vida coletivos das comunidades tradicionais são prejudicados pela falta de acesso às suas terras.125
A comunidade sofreu outro revés em junho de 2019, quando a juíza do Tribunal de Justiça, Telma Britto, acatou novas denúncias feitas pelos fazendeiros de que os moradores do Capão estariam invadindo suas reservas legais.126 Em fevereiro de 2022, uma nova decisão do juiz de primeiro grau, Matheus Agenor Alves Santos, reverteu a liminar concedida anteriormente pela juiza Marlise Freire Alvarenga, assim permitindo que a comunidade permanecesse na área.No mês seguinte, a decisão foi suspensa por Britto até que houvesse recurso.127 Em abril de 2023, a juíza Britto mais uma vez ficou do lado dos fazendeiros e decidiu que o caso não estava relacionado a um conflito fundiário, mas sim à invasão de propriedade privada por um pequeno grupo de pessoas.128 A comunidade recorreu e o caso segue em andamento.
Paralelamente a esta batalha jurídica, em 2021, o órgão fundiário rural da Bahia, CDA, criou uma comissão especial para avaliar a quem pertenciam os 11.200 hectares ocupados pela comunidade. A conclusão foi favorável à comunidade e contrária aos grandes produtores rurais. Em março de 2022, a CDA recomendou ações legais contra os fazendeiros.129
Em dezembro de 2022, o procurador-geral da Bahia Sisterolli Batista finalmente assumiu a causa e abriu processo contra os fazendeiros.130 Ele se referiu ao Capão do Modesto como “um dos mais graves casos de grilagem de terras da Bahia” e solicitou a suspensão imediata e o futuro cancelamento de todas as matrículas sobrepostas à comunidade.131 O procurador-geral destacou ainda o contexto de atos violentos, ameaças, detenções arbitrárias e fechamento de estradas perpetrados contra a comunidade por seguranças armados contratados pelos fazendeiros.132
Em maio de 2023, o então juiz de Correntina, Matheus Agenor Alves Santos, ordenou o bloqueio de todos os títulos de propriedade do Capão e a suspensão das ações judiciais dos fazendeiros sobre a área.133
Embora a decisão seja uma vitória para a comunidade, os seus problemas estão longe de terminar. Não está claro se a ação do procurador-geral será capaz de fazer os fazendeiros desistirem de suas reivindicações sobre o Capão do Modesto. Enquanto isso, Silva e seus companheiros do Capão continuam a viver com medo do próximo movimento dos fazendeiros, sob o olhar atento de bandidos armados.
Pagando para escapar do problema
As revelações que vieram à tona em 2019 são mais uma exemplo da flagrante grilagem de terras em grande escala no oeste da Bahia. Naquele ano, a Polícia Federal divulgou notícias chocantes de que um vasto esquema de corrupção, envolvendo dezenas de empresários, advogados, juízes, magistrados e políticos, atuava no estado há anos. Entre seus supostos protagonistas estava ninguém menos que Walter Horita.134
A investigação policial, conhecida como Operação Faroeste, expôs a venda generalizada – e por grandes somas de dinheiro – de decisões judiciais relacionadas a disputas fundiárias na Bahia. O nível de evidência ou suspeita contra Walter Horita deve ter sido suficientemente forte para justificar sua escuta telefônica pela polícia como parte das investigações.
As transcrições das conversas telefônicas de Horita revelam suas aparentes tentativas de influenciar membros do judiciário e políticos em Salvador em relação ao processo do procurador-geral contra a Estrondo ou os proprietários de terras com reservas no Capão do Modesto.135 Em novembro de 2019, a Polícia Federal realizou buscas no escritório e na casa de Horita e apreendeu documentos.136
De acordo com a denúncia que deu início à Operação Faroeste, entre 2013 e 2019, Horita teria feito transferências bancárias bilionárias – pelo menos R$ 7,5 bilhões (US$ bilhões) – em violação das regras de transparência sobre os dados de remetentes e beneficiários.137, 138 A investigação também revelou que, entre março e julho de 2018, Horita aparentemente transferiu um total de R$ 6 milhões (US$ 1,2 milhão) para um funcionário do judiciário.139
As revelações, que levaram a processos criminais e civis ainda em andamento, resultaram na suspensão de figuras importantes do judiciário baiano. Entre elas estava a juíza Marivalda Moutinho,140 que trabalhava em Formosa do Rio Preto e foi descrita pelo Ministério Público Federal como o “epicentro criminoso” do esquema de corrupção.141 Em seu escritório, os policiais encontraram documentos com os nomes Walter Horita e Estrondo escritos à mão ao lado da quantia de R$ 670 mil (US$ 137 mil).142 A juíza teria agido com o apoio de um assessor acusado de negociar as quantias pagas por Horita e outros produtores de commodities aos juízes envolvidos.143
Em 2021, a imprensa brasileira noticiou que Horita se ofereceu para colaborar com a investigação sob um acordo de delação premiada e assinou um acordo extrajudicial com o procurador-geral federal.144 Horita supostamente pagou R$ 20 milhões (US$ 4 milhões) como parte do acordo.145
Em comentários enviados à Earthsight, o Grupo Horita afirma que Walter Horita não foi alvo de denúncia pelo Ministério Público Federal, no Superior Tribunal de Justiça. O Grupo “nega veementemente” que Horita tenha celebrado um acordo de delação premiada146 e diz que a empresa nunca teve qualquer negócio com a juíza Moutinho. De acordo com o Grupo Horita, auditorias independentes confirmam que Walter Horita nunca movimentou dinheiro de forma que violasse as regras de transparência.147
Enquanto isso, o agronegócio continuou a desmatar vastas áreas de Cerrado em terras públicas roubadas no oeste da Bahia para abastecer mercados de algodão e grãos no exterior. A devastação ocorreu muitas vezes com a cumplicidade do estado. A Estrondo, o Grupo Horita e a SLC Agrícola têm cada um as suas próprias histórias sombrias de desmatamento, como veremos no próximo capítulo.
Capítulo 3:
Crimes contra o Cerrado
“A gente banhava em rio até com medo de jacaré. Hoje em dia, sumiram até as lagartixas.”
Marcos Rogério Beltrão dos Santos
Ambientalista local, em referência aos impactos do desmatamento no oeste da Bahia
O Cerrado abriga 5% de todas as espécies do mundo e um terço da biodiversidade do Brasil.149 O bioma tem um papel crucial na manutenção de vários dos principais rios brasileiros e sul-americanos.150
Membros de comunidades tradicionais do oeste da Bahia, incluindo os geraizeiros, lembram-se com saudade dos dias em que o tucumã, o pequi, o capim dourado e o coco eram abundantes. Eles conseguiam caçar e pescar. Durante gerações, o Cerrado proporcionou a essas comunidades alimento, água potável, abrigo e medicamentos naturais.
Tudo isso mudou drasticamente. Nas últimas décadas, o Cerrado perdeu mais da metade de sua vegetação nativa para a agricultura em grande escala.151 Desde 1985, o estado da Bahia perdeu quase um quarto de seus nove milhões de hectares originais de Cerrado para a agricultura industrial.152 O impacto climático tem sido enorme: a remoção da vegetação do Cerrado para a produção agrícola gera tanto carbono por ano quanto as emissões anuais de 50 milhões de carros.153
O Cerrado corre o risco de perder mais de 1.100 espécies até 2050 se a expansão do agronegócio continuar no ritmo atual.154 Diversas espécies da fauna (lobo-guará, rolinha-do-planalto) e da flora (juçara, brasiliana, canelinha) estão ameaçadas de extinção devido à perda de habitat – realidade que atinge quase um quinto das espécies do bioma.155 O tatu-canastra perdeu mais de 50% de seu habitat natural no Cerrado.156
As comunidades locais viram as suas atividades tradicionais gravemente prejudicadas por fatores como invasão de monoculturas, colapso da biodiversidade, exploração excessiva dos recursos hídricos e poluição por agrotóxicos. As chapadas, antes repletas de emas, seriemas, corujas, queixadas e até onças-pintadas, agora estão vazias.157
Os moradores locais mostraram à Earthsight leitos de rios secos e nascentes perdidas. A previsão é que os principais rios do Cerrado sofram uma queda de 34% nos seus níveis de água – equivalente a oito vezes o volume do Rio Nilo – até 2050, devido principalmente ao desmatamento e à exploração predatória.158 Pesquisadores da Earthsight dirigiram por estradas locais que estão cedendo à medida que o Urucuia, maior aquífero do Brasil, é explorado para irrigação de forma insustentável.
O algodão, em especial, é uma cultura que exige muita água. Estima-se que sejam necessários 10 mil litros de água para produzir 1 kg de fibra de algodão, e 2.700 litros de água para fazer uma camiseta de algodão.159 O agronegócio do oeste da Bahia extrai quase dois bilhões de litros de água por dia – o suficiente para abastecer 12 milhões de pessoas – praticamente de graça.160
Em contrapartida, o mesmo agronegócio despeja 600 milhões de litros de agrotóxicos no Cerrado todos os anos.161 O algodão utiliza quantidades consideravelmente mais altas de agrotóxicos classificados como altamente perigosos do que qualquer outra lavoura.162 Dado que os agrotóxicos são um fator importante nas emissões de gases de efeito estufa de uma plantação, a sua ampla utilização na produção de algodão também significa que o produto tem uma pegada de carbono elevada em comparação a outras commodities.163
Na verdade, a produção têxtil emite mais CO2e (CO2 equivalente) por ano do que todos os voos internacionais e o transporte marítimo juntos.164 Cerca de 70% desse valor vem da produção de matérias-primas, incluindo algodão.165 Algumas estimativas dizem que a indústria têxtil global tem uma pegada de carbono semelhante à de todos os Estados-Membros da UE juntos.166 Outros dizem que, se a indústria da moda fosse um país, seria o sexto maior emissor de gases de efeito estufa do mundo.167
Estrondo: um longo histórico de ilegalidades
Além dos baixos vales cobiçados pelo agronegócio como reservas legais, as matas outrora abundantes nas chapadas da Estrondo foram substituídas por monoculturas de algodão e soja até onde a vista alcança. É possível dirigir por uma hora pelas chapadas da Estrondo e não ver nada além de vastas plantações e um ou outro silo ou instalações administrativas. Com frequência, pode-se sentir o cheiro de agrotóxicos no ar.
A Estrondo tem uma longa e preocupante história de desmatamento ilegal em grande escala.168 Desde 2004, duas das empresas que administram a Estrondo, CMOB e Delfin Rio, foram multadas em um total de R$ 125 milhões (US$ 26 milhões) pelo Ibama, inclusive pelo desmatamento não autorizado de 60 mil hectares.169 Na década de 2000, o órgão embargou 45 mil hectares da propriedade devido a desmatamento feito com base em licenças vencidas.170 Um embargo é uma medida punitiva usada pelo Ibama para impedir a exploração comercial de um pedaço de terra e permitir que ele se regenere. Os fazendeiros não estão autorizados a plantar ou criar gado em áreas embargadas. Os embargos estão entre as ferramentas de aplicação da lei mais importantes do Ibama e são amplamente utilizados em todo o Brasil.
Até 2007, mais da metade da área atual da Estrondo havia sido desmatada. A destruição atingiu impressionantes 167 mil hectares, uma área maior que Londres, com parte das reservas legais das fazendas degradadas ilegalmente.171 Estima-se que, em uma possível ação civil, a Estrondo teria que pagar ao estado da Bahia mais de R$ 200 milhões (US$ 40 milhões) em danos ambientais.172
O próprio Ibama se viu envolvido nas ações obscuras dos proprietários de Estrondo. Em 2003, três agentes do Ibama no oeste da Bahia foram acusados de emitir autorizações de supressão de vegetação fraudulentas para a Estrondo desmatar 49 mil hectares173. Eles acabaram sendo suspensos e processados por corrupção em um processo judicial que também envolveu as três empresas que administram a Estrondo.174 Um relatório do Ibama de 2008 concluiu que pelo menos 38 mil hectares dessa área foram desmatados.175
A Estrondo e os seus fazendeiros não são os únicos culpados pela destruição em grande escala de terras que, para começar, nunca deveriam ter se tornado fazendas. O Inema, órgão ambiental da Bahia, também tem seu grau de responsabilidade.176
O promotor público Eduardo Antônio Bittencourt Filho não hesita em criticar o comportamento do órgão: “ O grande problema da gestão ambiental no estado da Bahia, nesse momento, é exatamente as autorizações de supressão de vegetação.”177 A recente perda de dezenas de milhares de hectares de vegetação nativa na Estrondo confirma isso.
Em 2019, o Inema autorizou de forma inexplicável a Delfin Rio a remover 24.700 hectares de vegetação nativa na parte oeste da Estrondo.178 ONGs e o Ministério Público da Bahia argumentaram que a licença era ilegal devido, entre outras coisas, ao processo em andamento contra a Estrondo por grilagem de terras movido pela procuradoria geral.179
Em 2021, o Inema finalmente notificou a Delfin Rio de que esta deveria buscar a autorização do órgão fundiário rural da Bahia, CDA, antes de prosseguir com a liberação devido a problemas jurídicos da Estrondo. Não surpreende que essa medida seja muito branda e tenha surgido muito tarde.180 Entre o fim de 2021 e o início de 2022, a Delfin Rio desmatou todos os 24.700 hectares autorizados ilegalmente.181 A Estrondo disse à Earthsight que atua com as licenças ambientais necessárias.
Grupo Horita: sua verdadeira pegada ambiental está cercada de mistérios
A Earthsight não conseguiu determinar se algum dos casos de desmatamento ilegal relacionados à Estrondo, e descritos acima, envolve o Grupo Horita, o maior agronegócio da propriedade. Mas a empresa certamente é culpada de pelo menos algumas infrações.
Em 2008, o Ibama embargou uma fazenda de 900 hectares chamada Lote 16, embargo que ainda está em vigor.182 Naquela época, essa fazenda não pertencia ao Grupo Horita, que a adquiriu em 2014. Por lei, as áreas embargadas não devem ser utilizadas para plantação, mas sim deixadas de lado para regeneração. Para verificar se a empresa estava cumprindo essa exigência, a Earthsight analisou mais de 100 imagens de satélite disponíveis no Global Forest Watch para o período 2015-2023, abrangendo principalmente as semanas entre o fim de maio e o fim de agosto, quando ocorre a maior parte da colheita e o algodão é facilmente visível porque os frutos brancos estão totalmente abertos. A análise revela que o Grupo Horita cultivou algodão na área embargada do Lote 16 em pelo menos quatro anos (2017, 2018, 2021 e 2023) desde que adquiriu a propriedade, o que viola o embargo.
Em agosto de 2014, o Inema encontrou 25.153 ha de desmatamento ilegal em fazendas arrendadas pelo Grupo Horita na Estrondo. Estas estavam dentro dos 49 mil hectares autorizados ilegalmente por agentes do Ibama anos antes.183 Em 2020, o Inema indicou que não conseguiu encontrar licenças para 11.700 hectares de desmatamento realizado entre 2010 e 2018 em fazendas operadas pelo grupo na Estrondo.184
Na verdade, apesar das buscas exaustivas e dos pedidos de acesso à informação não respondidos pelo Inema, a Earthsight quase não encontrou licenças de supressão de vegetação, conhecidas como ASVs, emitidas para o Grupo Horita e suas empresas afiliadas.185 Isso indica que as licenças, quando existem, podem ter sido solicitadas e emitidas em nome de terceiros.186 Sem as licenças, não é possível avaliar a sua legalidade ou verificar se o Grupo Horita cumpriu os seus termos. Este é um grave ponto cego, pois a investigação indica que o Inema emitiu diversas ASVs irregulares ao longo da última década e meia.187
Entre 2002 e 2019, os proprietários do Grupo Horita foram multados em um total de quase R$ 22 milhões (US$ 4,5 milhões) pelo Ibama devido a infrações ambientais no oeste da Bahia.188 Questionado pela Earthsight sobre essas multas (que são direcionadas a indivíduos específicos, não ao grupo corporativo, como é comum no Brasil),189 o Grupo Horita disse à Earthsight que “praticamente todas as multas […] foram consideradas infundadas”. O Grupo não deixou claro a quais multas se referia. A análise do banco de dados público do Ibama revela que pelo menos dois terços das multas permanecem em vigor ou foram pagas, confirmando sua validade.190
Fora da Estrondo, a fazenda Timbaúba, também de propriedade do Grupo Horita empresa, no município de Luís Eduardo Magalhães, foi alvo não de um, mas de dois embargos do Ibama. Ambos foram impostos em abril de 2018 nas duas pistas da fazenda utilizadas para pulverização aérea de defensivos agrícolas e outros agrotóxicos, indicando irregularidades nessa prática.191 Os dados de voo analisados pela Earthsight mostram pelo menos dez pousos e decolagens nessas pistas entre maio de 2021 e julho de 2023,192 violando os embargos. A Timbaúba, fazenda de 16 mil hectares, é uma das propriedades da empresa que cultiva algodão.
Nos comentários enviados à Earthsight, o Grupo Horita reconheceu esses dois embargos, mas argumentou que a utilização das pistas tinha sido legal. Apontou para uma licença ambiental que recebeu para uma delas em agosto de 2023 – não está claro quem a emitiu – e a sua expectativa de que outra licença para a segunda pista seja emitida pela autoridade municipal a qualquer momento. A empresa não explicou como essas licenças autorizaram retroativamente o uso das pistas embargadas.
Os casos destacados acima ilustram um histórico de infrações ambientais, desrespeito à lei e destruição da vegetação do Cerrado. Com base em nossas análises das fazendas passadas e atuais do Grupo Horita no oeste da Bahia – incluindo propriedades arrendadas ou próprias – a Earthsight estima que a empresa desmatou pelo menos 30 mil hectares de vegetação nativa nos últimos 20 anos.193 E essa é uma estimativa conservadora. É mais provável que o grupo seja responsável por 50 mil ou mesmo 60 mil hectares de desmatamento de Cerrado nativo no oeste da Bahia neste século.194
A dificuldade em avaliar com precisão as ligações do grupo com o desmatamento deve-se a estratégias complexas adotadas para adquirir, arrendar ou vender inúmeras propriedades ao longo das décadas. O registro de títulos de terra na Bahia é incrivelmente obscuro e difícil de rastrear devido ao uso generalizado de testas de ferro e outros métodos de manipulação comumente adotados pelo agronegócio, conforme demonstrado pelos casos de grilagem de terras descritos acima.195
É surpreendente que, embora o próprio Grupo Horita admita produzir em grande escala no oeste da Bahia desde meados da década de 1980,196 os 104 registros de títulos de terra relacionados à empresa identificados e analisados pela Earthsight indicam que a Horita só adquiriu sua primeira fazenda na região em 1999, com a maioria dos registros de datas posteriores a 2004.197 Apesar de buscas exaustivas em registros de propriedades e dados de cartórios, a Earthsight não conseguiu identificar títulos para mais de 30 propriedades aparentemente da empresa no oeste da Bahia. Além disso, cerca de apenas um terço dos títulos de propriedade que analisamos continham datas de aquisição das propriedades.
É impossível dizer quanto do desmatamento nas fazendas do Grupo Horita foi legal, mas é fácil entender que nada disso é sustentável para a conservação do Cerrado e sua biodiversidade a longo prazo, ou para a subsistência das comunidades tradicionais. O Grupo Horita afirma não possuir um único hectare em contravenção à legislação ambiental. Afirma ter comprovado a legalidade de suas atividades em relação a todas as sanções impostas pelos órgãos ambientais. No entanto, o registro público discutido acima em relação a multas e embargos mostra que a empresa tem um longo histórico de infração à lei. Essa prova é difícil de descartar.
SLC: quando o desmatamento custa tanto quanto uma “multa de trânsito”
A SLC Agrícola tem um histórico igualmente impressionante de desmatamento no oeste da Bahia. A empresa foi apontada como uma das maiores desmatadoras no Cerrado.198 As fazendas da SLC -Piratini, Palmares e Parceiro -, as quais cultivam algodão, perderam pelo menos 40.000 hectares de vegetação nativa do Cerrado nos últimos 12 anos.199 Embora a SLC tenha dito à Earthsight que não desmatou nenhuma área desde 2020 e que adotou uma política de desmatamento zero em 2021, sob a qual se compromete a não converter mais vegetação nativa em plantações, um relatório da Aidenvironment revela que a empresa desmatou 1.365 hectares de vegetação nativa em sua fazenda Palmares em setembro de 2022. Cerca de metade desta perda (700 hectares) foi registrada na reserva legal da fazenda.200
Imagens de satélite analisadas pela Earthsight encontraram um padrão de incêndios e perda florestal em áreas zoneadas para conservação dentro das fazendas de algodão da SLC201 para quase todos os anos entre 2012 e 2023.202 Um grupo de propriedades da SLC em Formosa do Rio Preto, conhecido como Fazenda Parceiro, que planta algodão, perdeu cerca de mil hectares de reservas legais e outras áreas protegidas devido a incêndios e desmatamento entre 2014 e 2021.203
As repetidas ocorrências de perda de vegetação nessas áreas são fortes sinais de violações das leis ambientais, que exigem que as empresas preservem suas reservas legais e outros tipos de áreas protegidas.204, 205 A SLC Agrícola disse à Earthsight que os incêndios não foram causados pela empresa, mas sim resultado de processos naturais.206
O Ibama multou a empresa em mais de R$ 1,2 milhão (US$ 250 mil) desde 2008 por infrações ambientais cometidas em suas fazendas de algodão no oeste da Bahia.207 Contudo, isso não parece incomodar alguns dos acionistas da SLC. A empresa conta com vários investidores estrangeiros, incluindo a Odey Asset Management, de propriedade de Crispin Odey, um dos maiores financiadores da campanha do Brexit no Reino Unido. O investidor britânico alegou que as infrações ambientais da SLC Agrícola custaram tanto quanto uma “multa de trânsito”.208 A SLC disse que recorreu de todas as multas do Ibama e aguarda decisões finais.
Marcas globais são coniventes
A destruição do Cerrado em escala industrial – muitas vezes possibilitada pela cumplicidade do Estado, mas outras vezes totalmente ilegal – aconteceu por um motivo. As commodities produzidas nessas terras têm fácil acesso a mercados estrangeiros lucrativos e cada vez mais ávidos por matérias-primas.209 O algodão é um excelente exemplo. Grandes produtores do oeste da Bahia acumularam terras, riqueza e poder político graças, em parte, ao boom nas exportações brasileiras de algodão cru nas últimas décadas.210
Como veremos, grandes empresas europeias de varejo estão impulsionando essa destruição com a sua fome insaciável de algodão. Os consumidores provavelmente não estão cientes de como suas roupas, toalhas e lençóis contribuem para a miséria causada às comunidades locais e à vida selvagem no Cerrado brasileiro. Mas as cadeias produtivas ocultas que levam o algodão do Grupo Horita e da SLC até compradores europeus podem ser expostas. Elas revelam a realidade dramática do fracasso das marcas europeias em compreender plenamente e lidar com suas ligações com algodão sujo proveniente do Brasil.
Capítulo 4:
A conexão ocidental
O fio que liga o algodão do Cerrado até as maiores marcas de moda do mundo
Para preparar este relatório, a Earthsight se debruçou sobre milhares de registros deexportações, informações disponibilizadas por indústrias têxteis asiáticas,211 listas de fornecedores publicadas pelos principais varejistas e marcas de moda do Ocidente,212 além de outras fontes.213 Nossos investigadores também se passaram por investidores estrangeiros e visitaram a segunda maior feira de agronegócio do Brasil e diversas feiras têxteis na Europa.214 A investigação revelou uma dura realidade: o algodão manchado pelo desmatamento, pela grilagem de terras e pela violência contra comunidades tradicionais que documentamos na Bahia está indo parar nas cadeias produtivas de duas das maiores marcas de moda do mundo: Zara e H&M.215
Usando os registros de exportações disponíveis, a Earthsight conseguiu rastrear 816 mil toneladas de exportações diretas de algodão para mercados estrangeiros entre 2014 e 2023, feitas por dois polêmicos produtores de algodão da Bahia que estão no centro deste relatório, o Grupo Horita e a SLC Agrícola.216, 217 Outros dados sugerem que o total exportado pelas duas empresas nesse período foi, na verdade, superior a 1,5 milhão de toneladas, sendo que a diferença teria sido exportada através de intermediários. A SLC, por exemplo, afirmou ter sido responsável por 11% das exportações do Brasil em 2019/20, com exportações totais de 228.000 toneladas na região. Contudo, nós só conseguimos rastrear 80.320 toneladas daquele período.
Descobrimos que China, Vietnã, Indonésia, Turquia, Bangladesh e Paquistão são os principais destinos das exportações de SLC e Horita.218 Grande parte dos embarques identificados como provenientes dessas empresas foi para intermediários – negociantes de matérias-primas ou empresas que produzem apenas os fios, mas não os produtos acabados – ou para países (como a China) onde registros desse tipo de exportações não estão disponíveis. Ambos os casos levaram nossa investigação a um beco sem saída. Entretanto, nos casos em que conseguimos rastrear esse algodão contaminado até fabricantes de roupas na Ásia e daí até os mercados finais, constatamos que as empresas asiáticas forneceram produtos feitos comalgodão a conhecidas marcas ocidentais, incluindo milhões de produtos para Zara e H&M.219, 220
Com sede na Espanha, a Zara é propriedade do Grupo Inditex, que também detém as marcas Pull&Bear, Bershka, Massimo Dutti, Stradivarius e Zara Home.221 A Inditex e a sueca H&M são os maiores grupos de moda do mundo, com um lucro combinado de cerca de 41 bilhões de dólares em 2022.222, 223 Líderes no setor de fast fashion, as duas marcas contam com lojas no mundo todo, incluindo na América Latina, nos EUA e na Europa. A H&M possui 4.399 lojas em todo o mundo, enquanto a Zara e outras marcas da Inditex possuem 5.815.224, 225
O rápido crescimento do mercado de fast fashion nas últimas décadas é bastante polêmico devido à sua grande pegada ambiental e desperdício generalizado.226 Com um modelo de negócio baseado em preços baixos, grandes volumes de vendas e produção em massa, essas marcas reproduzem peças de desfiles de moda e as vendem a preços mais baratos. Novas coleções são lançadas a cada poucas semanas, mantendo assim o interesse dos consumidores. A H&M apresenta até 16 coleções de roupas por ano, enquanto a Zara chega a 24.227 Essas gigantes globais do varejo estão entre os maiores consumidores mundiais de algodão.
Identificamos oito fabricantes de roupas na Ásia que utilizam algodão Horita e SLC e, ao mesmo tempo, fornecem vestuário de algodão acabado a uma ou ambas as marcas de moda em questão.228
Nossa análise revelou que o maior comprador desse algodão contaminado nos últimos anos foi uma empresa indonésia chamada PT Kahatex. Na última década, a Kahatex esteve entre os cinco maiores consumidores de algodão brasileiro no mundo.229 O Brasil é o maior fornecedor de algodão para a indústria têxtil da Indonésia, na qual a Kahatex tem um papel de destaque.230 Quase um terço do algodão que a empresa utiliza é importado do Brasil.231 Entre 2015 e 2023, descobrimos que isso incluiu pelo menos 15.200 toneladas de algodão do Horita e da SLC vindas da Bahia.232 Dados mostram que o Horita e a SLC respondem por pelo menos 4%, e possivelmente até 29%, de todas as importações globais de algodão cru da Kahatex.233
Registros individuais de exportação de vestuário da Indonésia, por sua vez, revelam que a H&M é o segundo maior cliente da Kahatex, representando 29% das exportações de roupas da empresa.234 Descobrimos que as lojas da H&M na União Europeia importaram 74 milhões de pares de meias de algodão fabricadas pela Kahatex entre outubro de 2020 e setembro de 2021, incluindo 16 milhões para a Alemanha.235 A H&M também importou 1.041.113 moletons, 699.809 shorts e 654.401 calças da Kahatex para a UE.236 As lojas H&M nos EUA receberam 7,9 milhões de pares de meias Kahatex e, as do Reino Unido, 3,9 milhões.237 Com base nos preços médios de varejo no Reino Unido em outubro de 2023, a H&M vende anualmente 366 milhões de libras esterlinas em roupas de algodão fabricadas pela Kahatex (419 milhões de euros; 444 milhões de dólares).238
Informações sobre o fabricante de cada produto podem ser encontradas escondidas nas páginas individuais dos produtos vendidos pela H&M. Com base nesses dados, pudemos confirmar que entre os muitos produtos fabricados pela Kahatex e vendidos nas lojas H&M em vários países239 estão seus conhecidos pacotes de dez pares de meias masculinas lisas de algodão.240 A Kahatex também é listada como fornecedora de moletons esportivos.241
Outro fabricante asiático que atua como canal para esses produtos de algodão contaminado é o Jamuna Group, um dos maiores conglomerados industriais de Bangladesh.242 Quase dois terços das exportações de vestuário do Jamuna Group são para empresas do grupo Inditex.243 Desde pelo menos 2018, a empresa produz jeans e outras roupas de sarja para Zara, Bershka e Pull&Bear, que entram na Europa através da Espanha e da Holanda.244 Os registros de exportações da Zara listam o importador como Inditex; os das outras duas marcas os identificam de forma específica. Entre 2017 e 2023, o Jamuna Group importou diretamente pelo menos 7.010 toneladas de algodão produzido por SLC e Horita no oeste da Bahia.245 SLC e Horita foram responsáveis por entre 4% e 14% de todas as importações globais de algodão cru da Jamuna em 2023.246
Entretanto, no ano de 2023, até o mês de agosto, nossa pesquisa mostra que as lojas da Zara na Europa venderam 235 milhões de euros em jeans e outras roupas de sarja, feitas de algodão, fabricadas pela Jamuna em Bangladesh – aproximadamente 21.500 pares de calças por dia.247 Ao contrário da H&M, a Zara não identifica os fabricantes de produtos individuais no seu site, mas lista o país de fabricação. Quando os itens são fabricados em Bangladesh, é possível usar registros mais amplos de exportações de Bangladesh e descrições de produtos para identificar itens específicos fabricados pela Jamuna e vendidos pela Zara. Isso inclui jeans masculinos de corte justo248 e jeans femininos de cintura alta, também vendidos pela pechincha de 29,95 euros.249, 250
Um volume ainda maior de algodão cru (pelo menos 15.600 toneladas entre 2015 e 2023) da SLC e do Grupo Horita foi importado por outra empresa de Bangladesh, o Noman Group, que fornece produtos para Zara Home e H&M.251
Cinco fabricantes de produtos têxteis do Paquistão que fornecem para H&M e Zara também importaram milhares de toneladas de algodão cultivado no oeste da Bahia por Horita e SLC.252 Nas feiras têxteis realizadas em Frankfurt e Paris, em janeiro e fevereiro de 2023, investigadores da Earthsight conversaram disfarçadamente com representantes dessas empresas, que confirmaram que fornecem produtos às duas grandes cadeias de varejo.
Nos casos em que as meias de algodão masculinas mais básicas da H&M não foram fabricadas pela Kahatex, nossa investigação revelou que elas provavelmente foram fabricadas por outro cliente da SLC/Horita, a empresa paquistanesa Interloop.253 Um dos seus diretores disse aos investigadores da Earthsight que o grupo sueco é o maior cliente da Interloop.254 Os registros exportações confirmam que a Interloop enviou cerca de 30 milhões de pares de meias de algodão para a H&M em 2023, sendo os maiores destinos lojas na Alemanha, Suécia, EUA, Bélgica, Espanha, Reino Unido, Itália e Holanda. Ela enviou também 350 mil pares de jeans femininos para a Inditex no mesmo ano.255 Entre 19% e 42% do total das importações de algodão cru da Interloop em todo o mundo vieram da SLC ou do Grupo Horita, segundo os registros de importação do Paquistão.256
Em comentário enviado à Earthsight, a Inditex confirmou que adquire produtos acabados dos fabricantes asiáticos identificados nesta investigação, mas disse que, “de acordo com informações dos fornecedores”, essas empresas não compram algodão diretamente de nenhum produtor brasileiro. A empresa não forneceu qualquer prova para fundamentar essa afirmação, o que contraria as provas concretas obtidas pela Earthsight: registros de exportações individuais de cada contêiner, com números de código individuais, mostrando o número de fardos de algodão em cada um, o nome do fornecedor e a identidade do cliente.
Da mesma forma, a Interloop também negou importar diretamente algodão da SLC ou do Grupo Horita. A Kahatex simplesmente afirmou que compra algodão de “empresas globais de comércio de commodities”.257 Ambas as empresas apresentaram uma série de esquemas de certificação de algodão como prova de sua legalidade e sustentabilidade. O Jamuna Group e o Noman Group não responderam aos pedidos de comentários da Earthsight.
A H&M, por outro lado, não negou as ligações comerciais entre os seus fornecedores na Ásia e o Grupo Horita e a SLC (o que enfraquece a afirmação da Inditex, uma vez que a H&M e a Inditex compartilham vários desses fornecedores). Em vez disso, a empresa destacou que tem um “compromisso de longa data com a obtenção de matérias-primas de forma responsável […] ao mesmo tempo em que apoia comunidades e ecossistemas locais”.
Início da investigação
Afinal de contas, qual é o envolvimento dessas grandes varejistas de moda com o desmatamento e a grilagem de terras no Brasil? Parte da resposta está nas graves falhas de suas políticas e códigos de ética,258 sem falar nos sérios problemas dos códigos de ética adotados pelos fornecedores dessas empresas.
Para garantir que seu algodão foi produzido de forma ética, ambas as empresas alegam comprar algodão fornecido por agricultores certificados pela Better Cotton (BC), o sistema de certificação de algodão sustentável mais conhecido do mundo. Todo o algodão da H&M já possui certificação Better Cotton (ou, em muito menor grau, certificação orgânica).259 Mais de 90% do algodão da Inditex já era BC (81%), reciclado (6%) ou orgânico (4%) em 2022.260 A empresa esperava alcançar 100% de algodão BC ou orgânico em 2023.261 A H&M é um dos membros fundadores da Better Cotton e até recentemente estava representada no seu conselho de administração.262 As duas empresas são, de longe, as maiores usuárias de algodão certificado pela BC no planeta. A Inditex sozinha consumiu 205 mil toneladas em 2022.263
Em resposta às conclusões da Earthsight antes desta publicação, a Inditex disse que grilagem e desmatamento “não deveriam ser permitidos em nenhuma circunstância” e destacou os requisitos da Better Cotton sobre o respeito aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais.
Ao longo dos anos, o selo Better Cotton se tornou um símbolo de preocupação em relação ao meio ambiente. Anteriormente conhecido como Better Cotton Initiative (BCI), o esquema foi criado na Suíça há quase 20 anos. Os auditores desse esquema devem verificar o cumprimento de requisitos mínimos relativos às condições de trabalho em fazendas e fábricas, bem como à proteção ambiental durante a produção de algodão, incluindo a redução da utilização de água e agrotóxicos e a proteção dos solos e da biodiversidade.264
No Brasil, o programa Algodão Brasileiro Responsável (ABR), administrado pela Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), atua sob um acordo de benchmarking com a Better Cotton. Na verdade, isso significa que a Better Cotton e o ABR da Abrapa são concedidos como uma única certificação aos cotonicultores brasileiros.265
O Brasil é o maior produtor mundial de fibra de algodão certificada pela Better Cotton. O país é responsável por 42% do volume global certificado, com mais de dois milhões de toneladas em 2022.266
No entanto, há um problema bastante óbvio em tudo isso: o algodão que conseguimos relacionar a violações de direitos fundiários e abusos ambientais na Bahia tem certificação Better Cotton. Assim, só podemos concluir que o esquema de certificação é incapaz de impedir que algodão manchado por essas violações chegue até os consumidores finais. Além disso, os envolvidos parecem discordar sobre quanto do algodão em questão é certificado. Horita e SLC afirmam que toda a sua produção é certificada;267 a Better Cotton nos disse que as empresas têm apenas três fazendas certificadas atualmente, mas a Abrapa afirma que 14 das fazendas dessas empresas na Bahia são certificadas.268 Sem dúvida, várias dessas fazendas são certificadas. As plantações de algodão da SLC ligadas a Capão do Modesto, onde documentamos irregularidades, por exemplo, e a fazenda Centúria, do Grupo Horita, em Estrondo, são certificadas de acordo com todas as partes.269
Essa confusão toda não chega a ser surpreendente, uma vez que a Better Cotton já demonstrou falhas graves em diversas ocasiões. Na verdade, esse esquema de certificação tem sido alvo de acusações de lavagem verde (greenwashing) e criticado por não permitir a rastreabilidade total das cadeias produtivas, além de não abordar as violações dos direitos humanos.270, 271 Análises anteriores indicam que seu selo de certificação não pode ser visto como nenhuma garantia de responsabilidade ambiental ou social.272
H&M e Inditex afirmaram que compartilharam as descobertas da Earthsight com a Better Cotton, que iniciou uma investigação a esse respeito. A Better Cotton disse que pediu à Abrapa que investigasse nossas descobertas,uma vez que as fazendas em questão foram certificadas pela associação brasileira. Afirmou que as conclusões iniciais apresentadas pela Abrapa “não identificaram quaisquer problemas de não conformidade”. Nenhuma evidência foi fornecida para fundamentar essa conclusão.
Seja como for, a Better Cotton indicou que “fez a avaliação de que são necessárias mais pesquisas […] para compreender melhor os riscos presentes na região e o que eles podem significar para a credibilidade da implementação de seus estândares”. Assim, afirmou que vai “contratar uma auditoria independente para realizar visitas de verificação reforçadas com foco nas áreas de risco destacadas no relatório”, com o objetivo de concluir uma avaliação no prazo de 12 semanas.
A certificadora afirma que caso sejam encontradas evidências de descumprimento de seus requisitos, as licenças do Grupo Horita e da SLC Agrícola “serão revogadas”. Reconheceu que investigações como a nossa “podem destacar áreas onde os objetivos estabelecidos pela Better Cotton Standard podem não estar sendo totalmente alcançados”.
'Better' Cotton?
Talvez a investigação inicial da Abrapa não tenha dado em nada por um motivo bastante simples: o problema não está na conformidade, mas sim nos próprios estândares.
Dos sete princípios que a Better Cotton exige que as empresas que cultivam algodão sigam atualmente, apenas um está relacionado à conservação do bioma ou das comunidades locais.273 O Princípio 4 diz respeito à biodiversidade e ao uso da terra, mas sua relevância para as questões observadas na Bahia é assaz limitada.274
A Better Cotton exige que, ao remover vegetação nativa para a produção de algodão, as fazendas certificadas sigam um processo desenvolvido para proteger “Altos Valores de Conservação” (AVC).275 Isso inclui a exigência de consultar e obter o consentimento livre, prévio e informado (CLPI) das comunidades locais afetadas, mas não é necessário que um produtor demonstre que detém direitos legais sobre a terra cultivada, ou seja, não é preciso demonstrar que a terra não foi "grilada". Não há proibição de cultivo de algodão BC em terras desmatadas ilegalmente antes de serem certificadas e, portanto, não há nenhuma fiscalização para saber se esse poderia ser o caso. Na verdade, a norma não inclui nenhum requisito para que as fazendas certificadas cumpram as leis relevantes sobre direitos fundiários ou proteção ambiental.
Mesmo os requisitos mais limitados são duvidosos, já que o sistema de conformidade está repleto de brechas. Na checklist usada pela Better Cotton para avaliar grandes fazendas (a mais rigorosa, uma vez que pequenos agricultores usam um sistema simplificado), não há indicadores específicos relacionados ao CLPI.276 Recomenda-se simplesmente aos auditores que perguntem à empresa em questão se ela cumpriu os requisitos da norma sobre Altos Valores de Conservação.277 A certificação parte do princípio de que as empresas confessarão de boa fé caso não tenham cumprido tais requisitos. E embora os membros da Better Cotton – incluindo Horita e SLC – sejam obrigados a assinar um 'Código de Prática' geral, que inclui a promessa de “cumprir todos os requisitos legais relevantes”,278 não existe nenhum mecanismo em vigor para verificar a conformidade. Mais uma vez, o sistema simplesmente pressupõe que as empresas não seriam capazes de mentir nessa declaração.
Como resultado dessas falhas, empresas que controlam diversas fazendas podem certificar apenas as boas ou retirá-las do esquema enquanto a conversão ocorre para, depois, certificá-las novamente.
De forma mais ampla, o sistema Better Cotton sofre de profundos conflitos de interesses, sobretudo no Brasil. A Abrapa – associação de produtores que existe para defender e promover os interesses do setor – é responsável pelo programa de certificação no país.279 A Abrapa trabalha em estreita colaboração com associações locais, incluindo a associação de produtores baianos Abapa.280 Tanto o presidente da Abapa quanto da Abrapa são cotonicultores.281 Luiz Carlos Bergamaschi e um membro da família Horita, ao lado de outros grandes produtores de algodão, fazem parte dos conselhos da Abrapa.282 Na prática, os produtores de algodão são responsáveis pela própria certificação.
Em comentário enviado à Earthsight, a Abrapa disse que não aprova, emite ou revoga certificados ABR/Better Cotton, todos feitos por auditores terceirizados. A Abrapa enfatizou que confia plenamente na independência de auditoria da ABR/Better Cotton, sem fornecer detalhes sobre como essa independência é garantida. A confiabilidade das várias empresas de auditoria externa encarregadas de fazer as verificações é colocada em xeque pelos seus próprios conflitos de interesses. No atual sistema de certificação, são as próprias empresas algodoeiras que pagam pelo trabalho das auditorias, que, por sua vez, competem entre si pelos contratos com essas empresas.
Numa reviravolta quase cômica, imediatamente após afirmar sua neutralidade, a Abrapa disse em sua resposta às nossas conclusões que iria “apoiar totalmente os produtores em ações legais” contra a Earthsight caso o nosso relatório lhes causasse algum dano. Também anexou os comentários do Grupo Horita e da SLC Agrícola à sua própria carta, ipsis litteris.
As grandes varejistas são um pouco mais honestas sobre os problemas da Better Cotton. A Inditex disse à Earthsight que “colabora continuamente com organizações certificadoras e outros terceiros especializados para melhorar a qualidade dos estândares, seus requisitos, ferramentas de rastreabilidade e políticas de conformidade”. A H&M disse que trabalha com a liderança da certificação para revisar constantemente o esquema e “identificar necessidades de melhoria”. A empresa admitiu que “apesar dos esforços dos responsáveis pelos estândares, é claro que podem ocorrer violações”.
Promessas vazias
A H&M ostenta uma série de compromissos com ecossistemas resilientes, devida diligência na cadeia produtiva, conservação de recursos hídricos, combate à corrupção e direitos fundiários das comunidades locais.283 A Inditex tem uma Estratégia de Biodiversidade para incentivar a boa gestão da terra por parte dos fornecedores de matérias-primas284 e uma Política de Direitos Humanos que inclui os direitos das comunidades.285
Porém, longe das feiras têxteis da Europa, as comunidades tradicionais do oeste da Bahia sofrem as consequências das promessas vazias feitas por marcas que se comprometeram a reduzir seu impacto ambiental. “As multinacionais defendem publicamente boas práticas e responsabilidade social, mas no fundo, quando olhamos para [seus impactos nas] comunidades tradicionais, a realidade é outra”, resume o ambientalista Marcos Rogério dos Santos.286
“Essas empresas estrangeiras deveriam se envergonhar. O mundo inteiro hoje compra algodão e soja contaminados pela grilagem de terras. Quem compra essas mercadorias pode ter certeza de que elas estão manchadas de sangue”, argumenta Iremar Barbosa de Araújo, professor e morador da comunidade tradicional de Arrojelândia.287
A indústria da moda europeia, apesar de seu imenso poder de mercado e capacidade financeira, parece relutante ou incapaz de implementar com rigor as políticas e sistemas de monitoramento necessários para eliminar seus riscos de ligação com grilagem, desmatamento e violações de direitos de comunidades locais. Como resultado, sem saber, os clientes dessas marcas são cúmplices de tais abusos.288
Algumas melhorias nos padrões estândares e procedimentos da Better Cotton estão em andamento. Um novo conjunto de Princípios e Critérios entrará em vigor em março de 2024,289 embora a implementação dos novos requisitos sobre conversão de terras tenha sido adiada para 2025. Mas, como demonstraremos no próximo capítulo, muitos problemas permanecem.
Se as empresas não conseguem agir por conta própria, é urgente que os governos e os reguladores tomem uma atitude. Alguns mercados consumidores mais ricos, incluindo a UE, o Reino Unido e os EUA, já estão adotando medidas nesse sentido. Contudo, como veremos no próximo capítulo, enquanto certos setores estão sendo regulamentados, ou espera-se que o sejam em breve, o algodão e a indústria têxtil estão, em grande parte, sendo deixados de lado.290 Isso precisa mudar.
Capítulo 5:
O que deve ser feito?
Regulação nos países consumidores
Em termos de pressão sobre a terra e consequências humanas e ecológicas, o consumo de produtos têxteis na UE perde apenas para o consumo de alimentos.291 Quase toda essa pressão ocorre no exterior e praticamente toda ela está relacionada ao cultivo de algodão.292 Os maiores culpados são justamente os maiores consumidores. A UE é a maior importadora de peças de vestuário do mundo, seguida pelos EUA.293
No entanto, embora esses mercados prestem cada vez mais atenção ao impacto do consumo de alimentos – incluindo soja, carne bovina, cacau e óleo de palma – em terras e florestas estrangeiras, o impacto do consumo de roupas nessas mesmas regiões recebe bem menos interesse. Isso precisa mudar.
Os governos na Europa e nos Estados Unidos estão gradualmente percebendo que ações voluntárias por parte das empresas nunca serão suficientes para resolver os problemas gerados em outros países pelo consumo de seus cidadãos. Selos verdes e esquemas de certificação são claramente incapazes de cumprir suas promessas,294 e sempre haverá empresas que simplesmente se recusarão a participar desses esquemas.
Como resultado, estão em desenvolvimento ou foram recentemente aprovadas nos países consumidores leis que procuram abordar os impactos negativos das cadeias produtivas por meio de uma maior regulação. Essas leis se enquadram em duas categorias principais: leis específicas para o desmatamento e leis mais amplas sobre direitos humanos e impactos ambientais.
A França tem uma lei geral sobre cadeias produtivas éticas, a Loi de Vigilance. Uma lei semelhante entrou em vigor na Alemanha em 2023, a Lieferkettenschutzgesetz (LkSG), ainda que com falhas graves.295 De acordo com a LkSG, as obrigações de devida diligência de uma empresa para com fornecedores indiretos são muito mais fracas do que para com fornecedores diretos, e uma empresa regulada só teria que realizar ações como uma análise de risco se tivesse “conhecimento fundamentado” de que ocorreram abusos de direitos humanos ou danos ambientais. Assim, como a indústria da moda europeia não compra seu algodão diretamente dos fazendeiros, essa abordagem é insuficiente para resolver os danos revelados neste relatório.
Com a Estratégia da UE para Têxteis Sustentáveis e Circulares, a Comissão Europeia concorda, em princípio, que é necessária uma ação liderada pelos governos para garantir que o setor da moda e a indústria têxtil mudem suas práticas.296 Adotada em março de 2022, a estratégia pretende reinventar o ciclo de vida de produtos têxteis e calçados, alterando a forma como os tecidos são fabricados, consumidos e descartados. Contudo, a estratégia dá pouca atenção aos impactos ambientais e sociais da produção de algodão.297 A resolução do Parlamento Europeu sobre a estratégia destaca a necessidade de cobrir toda a cadeia de valor dos produtos têxteis, mas não aborda diretamente as questões relacionadas ao fornecimento de algodão.298
Duas ações regulatórias da UE mencionadas na estratégia da Comissão e na resolução do Parlamento têm o potencial de abordar a cumplicidade europeia com os danos ambientais e as violações de direitos humanos revelados neste relatório.
Uma delas é a Diretiva de Devida Diligência e Sustentabilidade Corporativa da UE (CSDDD). Se for promulgada, a diretiva exigirá que grandes empresas que atuam na UE realizem a devida diligência em todas as suas cadeias produtivas. Como tal, a CSDDD poderia ter um impacto positivo para as comunidades afetadas pela produção de algodão em grande escala no Brasil. Se for aprovada, no futuro, empresas sediadas na UE, incluindo a Inditex e a H&M, terão de identificar e prevenir, mitigar, minimizar ou pôr fim aos impactos adversos sobre os direitos humanos e ambientais nas suas cadeias de fornecimento de algodão.
Apesar de ter passado por quase todos os obstáculos previstos para se tornar lei,299 a CSDDD foi quase sepultada no início de 2024 graças a uma mudança dramática por parte do governo alemão.300 Contrária às práticas da UE, o governo de coalizao da Alemanha retirou seu apoio um pouco antes do que seria apenas o cumprimento de formalidades na UE.301 A reviravolta do governo alemão foi resultado de uma mudança de atitude dopartido “pró-negócios” FDP, um parceiro minoritário no governo de coalizão do país. O FDP tem recebido doações de empresas que serão afestadadas pela CSDDD, incluindo grandes varejistas de roupas de algodão identificados pela Earthsight como importando vestimentas produzidas de forma suspeita na Ásia.302 Os esforços de última hora para salvar a lei levaram a um enfraquecimento ainda maior do texto, incluindo a restrição da aplicabilidade da lei apenas às maiores empresas e a extensão do período após o qual elas precisariam cumprir a lei.303
A CSDDD não é perfeita. Antes mesmo das últimas mudanças feitas para salvar a lei no Conselho, a pressão exercida por alguns Estados-Membros – notavelmente a Alemanha e a França – durante as negociações iniciais entre o Conselho e o Parlamento Europeu levou a um texto bastante fraco.304 Os direitos específicos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais não foram abordados, por exemplo.305 No entanto, a aprovação da lei traz a tão necessária responsabilização de algumas das cadeias produtivas europeias e permite que aqueles que são negativamente afetados pelas atividades dessas grandes empresas consigam responsabilizá-las perante os tribunais da UE.
A segunda lei é o Regulamento sobre Desmatamento da UE (EUDR). Essa lei entrou em vigor em junho de 2023 – embora as empresas só tenham de cumpri-la a partir de dezembro de 2024 – e é sem dúvida a mais rigorosa já aprovada em um grande mercado consumidor. Ela exige que as empresas rastreiem os bens descritos pela lei306 até a propriedade onde as matérias-primas foram produzidas. Exige que a produção não só seja livre de desmatamento, mas também legal perante as leis ambientais, fundiárias e de direitos humanos do país produtor. Também exige que as empresas realizem a devida diligência para garantir que o risco de violação dos requisitos da lei seja reduzido ao mínimo – uma mudança importante no ônus da prova, principalmente quando pensamos em lugares como a Bahia, onde as fronteiras entre legalidade e ilegalidade podem ser incertas.
O EUDR tem, no entanto, uma séria limitação: ele não inclui o algodão. Ao contrário do que acontecerá com outras commodities conhecidas por impulsionarem o desmatamento, incluindo a carne bovina, a soja e o óleo de palma (que estão incluídos), a lei não será capaz de impedir que as cadeias de fornecimento de algodão para a Europa sejam contaminadas por grilagem, desmatamento ou violações dos direitos fundiários de comunidades tradicionais. Ainda há, porém, uma luz no fim do túnel. A lei exige que a gama de produtos contemplados seja revista após os primeiros anos de implementação. A Comissão deve incluir o algodão nas suas próximas avaliações de impacto sobre os produtos que a lei poderá abranger no futuro.
Mesmo assim, o simples acréscimo do algodão e produtos derivados ao EUDR pode não ser suficiente. São também necessárias novas melhorias no EUDR307 e uma aplicação adequada. Por exemplo, a regulação precisa ir além do seu foco atual e restrito às florestas para proteger também outros tipos de ecossistemas, incluindo os menos densamente florestados, como o Cerrado.308 As autoridades responsáveis pela aplicação da lei nos países da UE terão de garantir que as leis que protegem os direitos das comunidades tradicionais sejam cumpridas, mesmo que não haja fiscalização local no país produtor ou que os governos locais sejam cúmplices de ilegalidades.309
Para “produtos que representam um risco florestal”, como carne bovina e soja, uma nova lei semelhante ao EUDR também foi recentemente promulgada no Reino Unido, como parte do Environment Act, embora ainda não tenha entrado em pleno vigor e não haja data prevista para que isso aconteça.310 Um projeto de lei semelhante, o FOREST Act, foi presentado no Congresso americano. Nenhuma dessas leis inclui o algodão, concentrando-se em vez disso em fatores de desmatamento mais conhecidos, como gado bovino, soja e óleo de palma.
Mesmo que essas questões fossem resolvidas, não está claro até que ponto seriam capazes de garantir que o algodão que entra nas cadeias produtivas do Reino Unido e dos EUA é de fato sustentável. Isso ocorre porque o Environment Act e o FOREST Act cobrem apenas o desmatamento ilegal – em vez de se concentrar na eliminação de todo e qualquer desmatamento das cadeias produtivas, como faz o EUDR. É pouco provável que esse foco exclusivo no desmatamento ilegal seja suficiente nos casos em que o desmatamento predatório é autorizado pelos governos locais, ainda que em descumprimento das próprias leis locais.311
Embora muitos detalhes da lei ainda não tenham sido definidos através de legislação secundária, o Environment Act do Reino Unido também se aplica apenas a florestas, conforme definido pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura,312 sofrendo assim da mesma limitação que o EUDR. Ademais, ele não se refere explicitamente aos direitos humanos. Portanto, resta saber se a legislação secundária incluirá leis que protegem os direitos humanos entre aquelas que precisam ser cumpridas.
Considerando que o algodão é uma das maiores fontes de pressão sobre a terra ligada ao consumo dos países ocidentais, os EUA, o Reino Unido, a UE e os Estados-Membros individuais da UE precisam ser mais ambiciosos. O nível ministerial do Conselho da UE e o Parlamento da UE devem finalmente aprovar a CSDDD. Em paralelo, os países membros da UE que buscaram uma legislação mais forte devem também considerar aprovar leis nacionais que sejam ainda mais robustas. As leis do Reino Unido e da UE sobre commodities de risco florestal devem ser reforçadas, sobretudo através da avaliação adequada do acréscimo do algodão à lista. Nos EUA, a inclusão do algodão no projeto do FOREST Act deve ser considerada, e deve ser desenvolvida com urgência uma legislação ética mais ampla sobre cadeias produtivas, semelhante à CSDDD. Acima de tudo, é fundamental que todas essas leis sejam devidamente implementadas e cumpridas, algo que parece estar longe da realidade com base em experiências anteriores ligadas a esforços legislativos para lidar com cadeias de suprimentos antiéticas.313
Ação no Brasil
A eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no final de 2022 foi saudada por ambientalistas de todo o mundo. A reintrodução de políticas de combate ao desmatamento na Amazônia, que praticamente desapareceram durante o governo de Jair Bolsonaro, foi uma das primeiras ações do início do mandato de Lula.
Como resultado, o desmatamento na Amazônia brasileira caiu quase 50% em 2023 em comparação com o ano anterior.314 Os defensores do clima puderam finalmente respirar um pouco mais aliviados.
No entanto, essa sensação de alívio foi incompleta. Embora as últimas notícias sobre a Amazônia sejam positivas, no Cerrado acontece o contrário: o problema está piorando. Em 2023, o bioma registrou taxas assustadoras de desmatamento, que aumentaram 43% em relação ao ano anterior.315
Como reação a essa tendência preocupante, o governo brasileiro anunciou a quarta fase de um plano para prevenir e controlar o desmatamento e os incêndios no Cerrado, conhecido como PPCerrado. O governo afirma que as iniciativas definidas no plano eliminarão o desmatamento até 2030, oferecendo à sociedade um vislumbre de esperança.
Contudo, a eficácia das medidas propostas é incerta, uma vez que o plano visa exclusivamente o desmatamento ilegal, contradizendo o objetivo de eliminar o desmatamento por completo.316 Não abordar o desmatamento autorizado pelos governos locais dá margem a políticas insustentavelmente permissivas – e às vezes ilegais – adotadas pelo estado da Bahia.
Embora a Constituição da Bahia de 1989 contenha disposições fortes sobre a proteção ambiental, sucessivos governos estaduais adotaram regulamentações que solapam essas disposições.317 Desde 2011, o licenciamento ambiental se tornou autodeclaratório e foi gravemente enfraquecido,318 o que já foi inclusive contestado por promotores públicos.319 Paralelamente, a aprovação de autorizações de supressão de vegetação (ASVs) disparou. Entre 2012 e 2021, foram emitidas ASVs para cerca de 750 mil hectares, uma área maior que Paris, Londres, Roma e Nova York juntas.320
Tão preocupantes quanto as autorizações de desmatamento são as centenas de autorizações concedidas ao agronegócio para perfurar poços e extrair água do aquífero Urucuia para fins de irrigação.321 Entre 2007 e 2022, foram emitidas mais de 830 autorizações para a extração de 17 bilhões de litros de água por dia.322 Somado aos efeitos do desmatamento, isso teve um impacto dramático na disponibilidade hídrica da região.
O governo federal deveria implementar um plano para interromper todo o desmatamento em grande escala no Cerrado, não apenas o ilegal. O governo da Bahia deveria cumprir o seu mandato constitucional e mapear todas as terras públicas para garantir que sejam preservadas e que as comunidades tradicionais desfrutem plenamente dos seus direitos fundiários. O órgão fundiário da Bahia deve acelerar as análises de títulos de terras supostamente fraudulentos que se sobrepõem aos territórios de comunidades tradicionais, com o objetivo de recuperar essas terras. Essa série de retrocessos nas políticas ambientais deve ser revertida imediatamente pelo órgão ambiental da Bahia, que também deve investir na transparência e disponibilizar todos os dados relacionados ao desmatamento e às autorizações para extração de água emitidas nas últimas décadas.
Ação das empresas
Embora a resposta final a essas ilegalidades esteja nas mãos dos governos, isso não significa que as empresas tenham que esperar até serem obrigadas a agir. Pelo contrário, com o aumento da regulação das cadeias produtivas globais ligadas ao consumo nos países ricos, as empresas deveriam avançar mais rapidamente para que estejam em uma posição melhor quando a regulação for de fato implementada.
O primeiro passo que as gigantes da moda devem tomar é estabelecer objetivos mais ambiciosos. A Política de Direitos Humanos da H&M não faz nenhuma referência a conflitos fundiários ou comunidades tradicionais,323 e nem seu Compromisso de Sustentabilidade nem sua Política de Fornecimento Responsável de Matérias-Primas identificam o desmatamento ligado à produção de algodão como um risco a ser monitorado e mitigado.324 A Inditex afirma que não administra terras em áreas protegidas e que respeita os direitos das comunidades locais “onde desenvolve a sua atividade empresarial”, mas não está claro se espera o mesmo de seus fornecedores de algodão.325
Suas políticas ambientais e de direitos humanos devem ser claras e abranger todas as suas cadeias produtivas envolvendo o algodão, além de especificar medidas que mitiguem os riscos de desmatamento, contaminação por agrotóxicos ou violações dos direitos das comunidades tradicionais. Suas políticas também devem incluir possíveis soluções para danos que venham a ocorrer. As grandes marcas europeias e norte-americanas não podem continuar se eximindo de suas responsabilidades pelos abusos e violações cometidos pela agroindústria do algodão.
No setor do algodão, as regulações ainda são incipientes, mas já começaram a incentivar algumas ações. Como a Better Cotton admitiu em 2022, “a rastreabilidade na cadeia de fornecimento do algodão se tornará em breve uma obrigação do mercado, com os legisladores de ambos os lados do Atlântico trabalhando para endurecer as regras”.326 Como parte de sua estratégia para 2030, a Better Cotton Traceability foi lançada no final de 2023. No entanto, ela não se compromete a rastrear o algodão até a fazenda de origem – o único nível de rastreabilidade que realmente importa –, limitando-se ao país de origem.327 Essa abordagem é claramente insuficiente, uma vez que as ilegalidades e os abusos cometidos em fazendas de algodão individuais permaneceriam invisíveis aos compradores estrangeiros, a menos que estes fizessem seu próprio rastreamento (o que tampouco tem ocorrido). Essas brechas também deixam o sistema totalmente vulnerável à ilegalidades.
A Better Cotton implementou um novo conjunto de Princípios e Critérios (P&Cs), que entrou em vigor em março de 2024.328 Eles exigem que os produtores de algodão mitiguem os riscos sociais e ambientais para as “comunidades vizinhas” e pessoas ou ecossistemas “além dos limites das fazendas”;329 também proíbem a conversão de “ecossistemas naturais” por fazendas certificadas após 31 de dezembro de 2019 (que, ao contrário dos outros P&Cs, só entrará em vigor a partir de agosto de 2025, um ano depois do inicialmente previsto);330 pedem a proteção de terras de Alto Valor de Conservação (AVC) por parte das fazendas que planejam novas conversões;331 e exigem o cumprimento de “todas as leis aplicáveis” no país produtor, incluindo aquelas decorrentes de tratados internacionais.332
Apesar de tudo, os problemas permanecem. A proibição do desmatamento após 31 de dezembro de 2019 não impede em nada que o algodão BC seja produzido em terras que foram desmatadas ilegalmente antes dessa data. A exigência de evitar danos às comunidades vizinhas nada diz sobre as comunidades cujas terras foram roubadas e transformadas em monocultura.333
Os critérios sobre a conversão de ecossistemas naturais e a proteção dos AVCs destinados a mitigar os riscos para as comunidades dentro dos limites das fazendas334 se aplicam somente antes de a terra ser convertida, deixando de ter qualquer relevância depois disso. Além disso, não exigem explicitamente o consentimento livre, prévio e informado das comunidades afetadas pelos planos de conversão.335 A Better Cotton poderia pelo menos ter sido mais clara ao afirmar que os novos critérios de AVC se destinam sobretudo a proteger os povos indígenas e as comunidades tradicionais, mas as orientações que eles prometeram a esse respeito ainda não foram publicadas.
Os critérios de legalidade também ainda são vagos sobre quais tipos de leis são aplicáveis, não mencionando nem sequer a importância das leis sobre uso e propriedade da terra.336 O texto não diz nada sobre o que se espera dos produtores em situações (comuns no Brasil) em que um órgão governamental diz que algo é ilegal e outro diz o contrário; ou quando uma empresa consegue apresentar alguns documentos legais, mas não todos os necessários. Em todos os casos documentados neste relatório, as fazendas certificadas em questão poderiam ter produzido algum tipo de “prova” de legalidade para apresentar aos auditores.
A questão mais ampla da implementação e execução também parece ter sido deixada em aberto. Mesmo nos casos em que as questões que expusemos poderiam ser abrangidas pelos novos P&Cs, há poucos motivos para acreditar que tais violações seriam detectadas ou que os responsáveis tomariam qualquer atitude a esse respeito. É exatamente isso que acontece, considerando os conflitos de interesses inerentes ao sistema. As empresas de auditoria são pagas justamente pelo agronegócio que deveriam avaliar. Nossa experiência na investigação de outros esquemas de certificação verde337 nos ensina que, em última análise, não podemos confiar na autofiscalização das grandes empresas globais.
Mesmo nos raros casos em que as questões que expusemos poderiam ser abrangidas pelos novos P&Cs e identificadas pelos auditores, é muito provável que pelo menos um pouco de algodão contaminado acabe chegando às cadeias produtivas da BC. O motivo é, naturalmente, a falta de rastreabilidade adequada destacada acima.
A Better Cotton deve agir para fortalecer seus padrões, bem como os sistemas usados para implementá-los e aplicá-los. Grandes marcas de roupas como H&M e a Zara devem pressionar a BC para avançar nesse sentido. Até que isso aconteça, devem ir além da utilização de esquemas de certificação para garantir que seus produtos tenham uma origem ética, instituindo verificações próprias mais rigorosas.
Crimes na Moda foi publicado em 11 de abril de 2024
Créditos
Pesquisa: Earthsight
Filmagens e imagens: Earthsight / Thomas Bauer (salvo indicação)
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