Os Intermediários

Como uma lei falha nos EUA permitiu que o maior exportador de pisos de madeira do Brasil inundasse o país com milhões de dólares de madeira suspeita

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Principais descobertas

  • Da Mata Atlântica à Amazônia, a investigação conjunta realizada pela Earthsight e Mongabay revela como pisos produzidos com madeira extraída ilegalmente por uma firma investigada por diversos escândalos de corrupção pela justiça brasileira tem inundado os Estados Unidos nos últimos cinco anos.
  • Detalhamos como a Indusparquet vem sendo acusada de usar intermediários que, por meios ilegais, facilitam o acesso a madeira tropical extraída de terra indígena ou fornecida por empresas multadas em milhões de reais por irregularidades.
  •  Os pisos de madeira produzidos pela empresa brasileira são vendidos por lojas em todos os Estados Unidos, incluindo grandes redes varejistas. Uma delas, inclusive, conseguiu comprar produtos suspeitos apesar de ter sido monitorada de perto pelas autoridades americanas.
  •  Nossa investigação revela como uma lei americana criada para prevenir a importação de madeira ilegal falhou e ainda destaca a urgência de novas medidas para impedir a importação de “commodities de risco florestal” de países como o Brasil.
  • Leia a lista completa das principais descobertas.
  • Leia as recomendacões da Earthsight.

O Agente no Paraná

"á combinamos com ele, entendeu. Tá combinado com ele, tudo certo pra serrar; só pra você ajeitar aí, né?"

"Tínha feito alguns negócios com a bracatinga (...) Por solicitação de um cliente nos Estados Unidos que gostou da madeira, nós fomos atrás comprar mais bracatinga."
José Antonio Baggio, cofundador da Indusparquet

Um encontro abençoado por Deus

Foram dias agitados para os moradores de União da Vitória, uma pequena cidade situada no meio da Mata Atlântica, no Paraná, sul do Brasil. Era setembro de 2016 e as eleições municipais estavam marcadas para o mês seguinte. Como em todo o país nesse período, os encontros entre os candidatos e seus apoiadores faziam parte do dia a dia de muitos de seus habitantes. 

Cidadão politicamente ativo, nas folgas do trabalho como chefe regional do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), órgão encarregado de licenciar autorizações de manejo florestal e conceder licenças de corte, André Aleixo estava ocupado participando de comícios promovidos por seu candidato favorito. O que ele provavelmente não esperava era que em um desses eventos, após um longo dia de trabalho, encontrasse Luiz Roberto Granatyr, dono de uma serraria local. Para ele, foi uma daquelas coincidências incríveis ou, em suas palavras, a prova de "como Deus faz a coisa certinha"1 ao trazer à sua porta alguém que ele estava desesperado para conhecer.

Em uma ligação telefônica que deve ter acontecido logo após eles se cumprimentarem e se apresentarem, fica evidente a empolgação de Aleixo ao conhecer Granatyr. Sabemos disso porque, sem o conhecimento dos dois homens, o telefonema estava sendo grampeado. 

Enquanto um grupo de investigadores do Ministério Público da cidade vizinha de Guarapuava procurava indícios de irregularidades de agentes públicos envolvendo licenciamento ambiental no Paraná2, eles se depararam com algo ainda mais sombrio: a suspeita de um esquema de corrupção envolvendo Aleixo e José Antonio Baggio, um dos proprietários da maior empresa de pisos do Brasil, a Indusparquet.

Este primeiro grampo gravou uma conversa que começou precisamente às 18h23 do dia 26 de setembro de 2016 e conectou Aleixo e Granatyr com um indivíduo conhecido como ‘Sandro’. Como as transcrições incluídas nas duas ações posteriormente movidas pelo Ministério Público do Paraná sugerem, o tom da ligação foi amigável e sugere que uma conversa anterior pode já ter ocorrido entre Aleixo e Sandro. 

Documentos judiciais identificam ‘Sandro’ como o apelido de Alessandro Faria, gerente da Masterpiso (também registrada sob o nome de Compensados Império), uma subsidiária da Indusparquet com sede no estado do Paraná. 

O assunto em discussão naquele dia era a compra de madeira de bracatinga para um ‘cliente americano’. 

Baggio, como explicou Faria, estava "um pouco desesperado" para conseguir 250 metros cúbicos de madeira de bracatinga, espécie endêmica da parte específica da Mata Atlântica onde Aleixo estava sediado, que ele queria entregar imediatamente. 

Ainda com Faria na linha, Aleixo pergunta assertivamente a Granatyr, que parecia estar na mesma sala que ele: “Duzentos e cinquenta cubico ai pra entrega, você consegue fazer se eu arruma a madeira?”

Baggio, como explicou Faria, estava "um pouco desesperado" para conseguir 250 metros cúbicos de madeira de bracatinga, espécie endêmica da parte específica da Mata Atlântica

Aleixo então voltou-se para Alessandro para confirmar que Granatyr tinha experiência em trabalhar com madeira de bracatinga e explicou que Granatyr desejava 700 reais por metro cúbico. Aleixo então disse: "Na realidade eu ia deixar em setecentos (reais) pra ver se ele me pagava uma comissãozinha, né?" e riu.

Sandro sugeriu que Aleixo fosse mais ambicioso e cobrasse 750 ou 800 reais para ter sua comissão “garantida”. Sandro explicou que a madeira serrada seria transportada para as instalações da Indusparquet, onde a partir dela seriam produzidos pisos antes de serem exportados. Também discutiram a produção do laminado de madeira de bracatinga, indício de que este poderia ser apenas o início de uma promissora parceria comercial. 

Aleixo perguntou a Granatyr se ele tinha experiência na produção de laminados e, ao confirmar que sim, disse a Granatyr e Alessandro que ajudaria a financiar a serraria de Granatyr e trabalharia como seu sócio na produção. 

Aleixo disse a Granatyr: “Eu entro com você, eu te ajudo a financiar a empresa e viramos sócios”. 

Aleixo encerrou a ligação dizendo como “Deus faz as coisa certinha”, por ter tido a oportunidade de conhecer Granatyr do nada. 

Trecho do processo judicial que traz detalhes de uma conversa entre André Aleixo e Alessandro Fraria. Fonte: Tribunal de Justiça do Paraná

Trecho do processo judicial que traz detalhes de uma conversa entre André Aleixo e Alessandro Fraria. Fonte: Tribunal de Justiça do Paraná

Discutidos os parâmetros básicos do negócio, Faria disse a Aleixo que o próprio Baggio assumiria as negociações a partir de então. 

Não demorou mais do que alguns minutos. Às 18h41 do mesmo dia, 26 de setembro de 2016, menos de 20 minutos após a ligação com Faria, Baggio ligou para o celular de Aleixo e foi recebido como "meu amigo", mais uma indicação de que essa pode não ter sido a primeira conversa entre eles.

O homem da chamada, José Antonio Baggio, era ninguém menos do que o cofundador da Indusparquet, empresa consolidada da indústria madeireira brasileira com mais de quatro décadas de história. Quando adolescentes, Baggio e seu sócio e o primo Luís Francisco “Kiko” Uliana, supostamente faziam pisos de parquet durante a semana e instalavam para clientes nos finais de semana.3 Desde que fundaram a empresa na década de 70, os dois foram construindo relacionamentos com uma ampla rede de fornecedores no Brasil4, com Baggio desempenhando o papel principal de comprar a madeira.5 Parecia claro que, apesar da considerável força de trabalho da empresa (supostamente em torno de 500 funcionários), Baggio não estava disposto a deixar de atuar diretamente na administração de seus negócios, lidando com os mais diversos fornecedores. 

Aleixo estava ansioso para contar a Baggio sobre seu encontro com Granatyr, mas logo percebeu que não foi uma circunstância fortuita nem a vontade do todo-poderoso que colocou o dono da serraria em seu caminho. Aliás, foi o próprio Baggio quem sugeriu que Granatyr procurasse Aleixo no evento de campanha política. Este não foi um encontro abençoado por Deus, mas algo deliberadamente planejado por um experiente comerciante de madeira no curso regular de seus negócios. 

"É o Luiz que está aí? (…) Eu pedi para ele falar com você”," Baggio contou a Aleixo. Baggio então explicou "Tá combinado com ele, tudo certo pra serrar; só pra você ajeitar aí, né?” 

Cofundadores da Indusparquet Luiz Francisco "Kiko" Uliana (direita) e José Antonio Baggio (esquerda). Foto: Julio Villela

Cofundadores da Indusparquet Luiz Francisco "Kiko" Uliana (direita) e José Antonio Baggio (esquerda). Foto: Julio Villela

Em sua análise, a promotora Juliana Mitsue Botomé parece acreditar que "ajeitar aí" significava que o papel de Aleixo seria identificar os produtores rurais de bracatinga da região, que precisariam de licenças de corte para retirar a madeira. E, na época, essas licenças eram entregues exatamente pela agência em que Aleixo comandava.6

Por qual outro motivo Baggio mandaria Granatyr procurar o réu André Aleixo? De acordo com Botomé, "Obviamente porque o réu José Antonio Baggio tinha plena segurança de que o réu André Luís Aleixo possuía, em razão do cargo público, poder de facilitar a aquisição da madeira".7

Outra pista de que era esperado que Aleixo usasse sua posição para resolver os tramites necessários aparece mais tarde na conversa entre Baggio e Aleixo. Aleixo diz a Baggio que se o desafio de Granatyr era conseguir a madeira, ele poderia ajudar a encontrar alguém que produzisse bracatinga. Baggio não tinha tempo a perder e entendeu que este já era um negócio fechado. 

Telefonemas grampeados 

A partir da informação anônima sobre o caso, Earthsight e Mongabay tiveram acesso e analisaram detalhadamente a mais de 4 horas de filmagens, transcrição das conversas interceptadas, depoimentos detalhados de testemunhas e documentos de transporte de madeira provenientes das ação civil pública, além de documentos de transporte obtidos através de pedidos via lei de acesso à informação (LAI). Isso nos permitiu ter acesso sem precedentes das negociações entre a Indusparquet e um de seus fornecedores locais, reveladas aqui pela primeira vez. 

Durante o período de 43 dias entre 26 de setembro e 8 de novembro de 2016, dezenas de conversas adicionais foram interceptadas revelando o andamento das negociações entre os réus Aleixo, Baggio, Granatyr e Alexandre Puzyna, que foi trazido para o esquema por Aleixo para atuar como intermediário nas negociações.

Mais de 30 fragmentos dessas ligações grampeadas acabaram sendo incluídos em duas ações – uma civil e uma criminal – movidas pelo Ministério Público Estadual como parte das alegações de corrupção. Na ação civil, Aleixo, Baggio, Granatyr e Puzyna foram autuados por improbidade administrativa, definida como ação dolosa e consciente perpetrada por agente público ou beneficiando agentes não-públicos.8

A promotora também pede que Indusparquet e Granatyr sejam punidos de acordo com as disposições da lei anticorrupção do Brasil, também chamada de Lei da Empresa Limpa

O ação cível foi apresentada com base em artigos de uma lei9 sobre ações civis públicas que visem violações de interesses coletivos como meio ambiente, consumidores ou patrimônio cultural e seções da Lei de Improbidade Administrativa brasileira que regulamenta10 o enriquecimento ilícito de funcionários públicos. O promotor também pede que Indusparquet e Granatyr sejam punidos de acordo com as disposições da lei anticorrupção do Brasil, também chamada de Lei da Empresa Limpa.11

O processo criminal, entretanto, tinha todos os elementos de um processo clássico de suborno. Aleixo foi autuado por enriquecimento ilícito enquanto exercia funções públicas e Baggio e foi autuado por oferecer propina a funcionário público em troca de informação privilegiada sobre fornecedores de madeira com licença para fornecê-lo.12 Puzyna e Granatyr também foram acusados por seu papel no suposto esquema.

No caso criminal, Baggio foi absolvido em primeira instância e um recurso apresentado pelo MP foi negado em uma decisão em agosto de 2022. Entretanto, os promotores dizem que o caso ainda não está encerrado, já que atualmente estão buscando vias para um novo recurso. Um processo civil contra ele e sua empresa continua em andamento. Conforme detalhado ao longo deste capítulo, as horas de conversas telefônicas gravadas foram incluídas tanto na ação criminal quanto na cível por estarem relacionados ao mesmo esquema de suposta corrupção. 

Embora Alessandro 'Sandro' Faria, que estabeleceu a ligação inicial entre Aleixo e Baggio, não tenha sido acusado, ele está ligado à família Indusparquet de forma complexa, como genro de Kiko Uliana, primo de Baggio e outro fundador da Indusparquet. Não há qualquer sugestão de que Alessandro tinha conhecimento do suposto esquema de corrupção. 

Alessandro Faria (centro) e o coproprietário da Indusparquet Luiz Francisco Uliana (direita) promovendo a empresa Masterpiso em um evento em Curitiba. Foto: Raquel Lima

Alessandro Faria (centro) e o coproprietário da Indusparquet Luiz Francisco Uliana (direita) promovendo a empresa Masterpiso em um evento em Curitiba. Foto: Raquel Lima

Baggio foi gravado falando com Aleixo duas vezes pelos investigadores, mas seu nome é mencionado várias vezes nas provas apresentadas pelo Ministério Público, não só por Aleixo, mas também por Granatyr, dono da serraria, que se tornou o principal ponto de contato de Baggio durante as negociações.

No dia 7 de outubro de 2016, por exemplo, o dono da serraria conta a Aleixo: "Eles estão com pressa, já me ligou essa semana, pra você ter uma ideia, três vezes. (...) Eu falei com o seu Zé Antonio (Baggio) que ele já pode fecha (...) o pedido lá.” 

Algumas semanas depois, em 25 de outubro, Granatyr disse a Aleixo que esperava receber outra ligação de Baggio, preocupado com o prazo de entrega da madeira: “Com certeza, hoje o Zé Antônio (Baggio) vai me ligar, né… ele tinha me ligado na quinta feira”.

"Isso, com certeza, (...), nisso é lógico. Você pode ficar nosso comprador na região porque eu estou na expectativa que vai vende bem isso daí, entendeu?"
José Antonio Baggio, cofundador da Indusparquet, fala para Aleixo depois que o funcionário público pediu que Baggio mandasse um email detalhando a comissão

Tanto na ação penal quanto na civil, a promotora Juliana Botomé aponta que Aleixo se comprometeu a garantir o fornecimento de madeira para a serraria por uma comissão, madeira que depois seria vendida para a Indusparquet. 

Segundo a ação cível movida pelo Ministério Público do Paraná, o pagamento da comissão foi solicitado e prometido como parte das negociações. Na ligação com Faria, conforme mencionado anteriormente, ao discutir o preço da madeira, Aleixo havia perguntado se seria pago pelo serviço. No entanto, a promessa não era apenas uma comissão, mas algo ainda maior. 

As escutas revelaram que Baggio também sugeriu que Aleixo pudesse trabalhar como seu agente na região. Em conversa gravada em 29 de setembro de 2016, às 8h46 da manhã, após solicitação de Aleixo por um e-mail detalhando sua comissão, Baggio respondeu, “Isso, com certeza, (...), nisso é lógico. Você pode ficar nosso comprador na região porque eu estou na expectativa que vai vende bem isso daí, entendeu?”. 

Lidando com os obstáculos 

A investigação indica que, para atender à demanda da gigante madeireira Indusparquet, Aleixo estava pronto para se arriscar e cometer atos potencialmente ilegais. Aleixo era chefe regional do escritório do IAP em União de Vitória, a agencia responsável pela concessão de licenças florestais e não podia usar isso para beneficiar interesses privados. Intermediar negociações comerciais entre madeireiras por uma taxa seria um conflito de interesses. Isso talvez explique porque Aleixo decidiu trazer Alexandre Puzyna para as conversas.

O inquérito sugere que Puzyna, seria o responsável por comprar e transportar a madeira do produtor rural para a serraria de Granatyr, enquanto Aleixo agiria nos bastidores, aparentemente para não correr o risco de ser descoberto. Pelo menos, talvez tenha sidoisso que ele esperava. 

Em 28 de setembro de 2016, Aleixo conta a Granatyr: "Vamos fazer o seguinte, mesmo que você ache o cara que tem a autorização, vamos passar pro Puzyna. Eu prefiro que cada um cuide de uma linha". 

André Aleixo em 2016, quando ocupava o cargo de chefe regional do IAP em União da Vitória. Foto: Marciel Borges

André Aleixo em 2016, quando ocupava o cargo de chefe regional do IAP em União da Vitória. Foto: Marciel Borges

Aleixo tinha outro grande problema a ser resolvido: obter a devida autorização para a serraria da Granatyr receber e processar a bracatinga. Apesar de não ter acesso ao Sinaflor, o sistema eletrônico do Ibama que monitora a exploração e o comércio de madeira, as escutas identificaram conversas que indicavam que Aleixo estava pedindo ajuda a seus colegas de trabalho para desburocratizar a obtenção do documento. 

Em uma ocasião, Aleixo chegou a viajar com alguns documentos para Curitiba, capital do Paraná, onde fica a sede do Instituto Ambiental. Em 25 de outubro, ele diz a Granatyr: “Eu vou pra Curitiba amanhã (...) Vou pedir pro Amador fazer amanhã, que agora quem faz é tudo por Curitiba, daí eu vou estar lá amanhã no IAP daí o cara arruma.”13,14

Enquanto aguardava a autorização que permitiria à Granatyr armazenar e processar a madeira de bracatinga, o grupo entrou em contato com um produtor rural da região por meio de uma conexão do Aleixo. A tentativa, no entanto, foi infrutífera, como revelam as investigações. Eles concluíram que a madeira que esse contato poderia fornecer não era grossa o suficiente para ser serrada. As árvores eram muito jovens. 

O site da Indusparquet no Brasil promove pisos feitos com bracatinga (também conhecida pelo nome de Amendôla). Fonte: Indusparquet SC

O site da Indusparquet no Brasil promove pisos feitos com bracatinga (também conhecida pelo nome de Amendôla). Fonte: Indusparquet SC

O problema da licença para a usina de Granatyr foi finalmente resolvido no início de novembro e, alguns dias depois, eles conseguiram encontrar outro produtor rural, que estava pronto para vender bracatinga a eles. 

Apesar de aparentemente tentar manter a discrição nas negociações, Aleixo estava envolvido até o pescoço nas discussões sobre como a madeira seria obtida e transportada, até mesmo usando seu próprio escritório durante o horário de trabalho para receber Puzyna e Granatyr para discutir detalhes da negociação, como revelam os documentos. Ele viajou a Curitiba numa tentativa aparente de ajudar a serraria de Granatyr a obter as licenças corretas. Em outra ocasião, ele aparece pedindo detalhes sobre o caminhão usado para levar a madeira para a serraria de Granatyr. “Oi, tem a placa do caminhão, aí?”, ele pergunta a Puzyna em 07 de novembro de 2016. Enquanto isso, um ansioso Baggio continuou a pressionar para que o processo fosse acelerado.

"Ele precisa porque o material que ele tem lá não é suficiente pra ele fazer o que ele combinou com os caras. Ele está preocupado"
Granatyr, em uma conversa telefônica com Aleixo, comentando a ansiedade de Baggio para receber a madeira

Enquanto isso, um ansioso Baggio continuou a pressionar para que o processo fosse acelerado. 

Em uma conversa entre Granatyr e Aleixo no dia seguinte, Granatyr disse, “Zé Antonio (Baggio) me ligou, não era nem oito horas, pra você ter ideia. (...) Ele precisa porque o material que ele tem lá não é suficiente pra ele fazer o que ele combinou com os caras. Ele está preocupado”.

Esta foi, inclusive, uma das últimas conversas que os investigadores interceptaram. 

Para saber se a Indusparquet conseguiu selar o negócio, a Earthsight e a Mongabay obtiveram os recibos e DOFs [autorizações de transporte de madeira] emitidas tanto para o produtor rural quanto para a empresa que transportou a madeira, por meio de solicitação de informações. Os documentos revelam que as cobiçadas toras de bracatinga finalmente chegaram à fábrica da Granatyr em 2 de dezembro de 2016.15

Cinco carregamentos saíram da serraria da Granatyr para a sede da Indusparquet no Tietê, em São Paulo. Elas ocorreram entre dezembro de 2016 e março de 2017 e totalizaram 35,64m3, volume bem menor do que os 250m3 originais discutidos nas conversas registradas em setembro daquele ano.16

Não está claro como Baggio ou Indusparquet se sentiram sobre uma negociação tão longa e confusa. O que era obvio naquele momento, no entanto, é que, longe de ser uma parceria caída no céu, o que deveria ter sido um acordo simples não apenas falhou em entregar todas as mercadorias, mas arrastou e continua a arrastar todos os envolvidos em um tormento judicial. 

Direto da fonte

Baggio, em depoimento prestado em 2017 como parte da ação cível, a princípio sustentou que não se lembrava de nenhuma conversa com Granatyr e não conhecia e nunca tinha ouvido falar de alguém chamado Aleixo. No entanto, no ano passado, em 5 de novembro de 2021, algo parece ter feito com que ele mudasse de ideia e ele finalmente foi persuadido a comparecer ao tribunal para um depoimento bastante diferente. 

Sobre o contato com Aleixo, Baggio admitiu que, de fato, havia feito a ligação para pedir bracatinga e oferecer-lhe o papel de 'comprador regional', contrariando seu depoimento de 2017. Ele alegou que pararam de se falar alguns dias depois, quando percebeu que ninguém no setor conhecia Aleixo. Baggio negou categoricamente saber que Aleixo era funcionário público. 

 “Nós, sabendo muito bem disso, porque a gente mexe com Ibama há muito tempo. Conhece muito a legislação. Que jamais um funcionário público pode fazer. Mas a gente ignorava que ele era um funcionário público”. 

Contradizendo as escutas telefônicas de 2016 que indicavam que Baggio havia pedido a Granatyr para procurar Aleixo, Baggio, em depoimento, disse que não sabia sequer que Aleixo e Granatyr estavam trabalhando juntos.

“Tinha falado com o Luiz (Granatyr) (...) para mandar madeira tambem. Mas nao sabia de nenhma ligacao entre os dois”. 

Curiosamente, ninguém na empresa parece ter feito uma simples busca na internet pelo nome de Aleixo. Vários sites trazem informações sobre a nomeação de Aleixo como chefe do órgão ambiental local e algumas das atividades de que participou durante o mandato

Ele ainda tentou alegar que as compras de madeira de Granatyr haviam ocorrido alguns meses antes da conversa com Aleixo, contrariando não apenas as gravações, mas também DOFs e recibos emitidos para os carregamentos de bracatinga de Granatyr para a Indusparquet, datados de dezembro de 2016 a Março de 2017, após as escutas telefônicas entre Baggio e Aleixo discutindo o acordo.17

Na audiência remota que aconteceu por videochamada em novembro de 2021, Baggio parecia tranquilo e confortável. Durante o depoimento, ele informou que sua empresa planejava expandir as operações no Paraná.

“A gente vai abrir uma fábrica agora em Irati. Parece que é a terra do doutor (juiz)18, não é isso?”.

O juiz confirmou balançando a cabeça e dando um sinal de positivo. O fato de Baggio saber o nome da cidade de origem do juiz não eh relevante. O fato dele mencionar o investimento da Indusparquet naquela cidade durante o processo levanta questões óbvias sobre o que o réu pode ter tentado alcançar, referindo-se à expansão de sua empresa neste contexto. 

Nada indica que este comentário evidencia qualquer relação inadequada ou influência corrupta do Juiz Spak ou de Baggio. Em nota, a Indusparquet rejeitou qualquer insinuação como "absurda".

Os longos atrasos no caso pareciam fazer parte do plano da equipe de defesa de Baggio, projetado para que as denúncias prescrevessem. Eles persuadiram os funcionários da Indusparquet e três de seus fornecedores a testemunhar a favor de Baggio, mas o tempo necessário para localizá-los em diferentes estados e obter suas declarações prolongou ainda mais as audiências. 

Além dos longos atrasos, a estratégia traçada pela defesa da empresa na ação cível parece ter se concentrou em três pontos: destacar como é comum pedir comissão em transações de madeira; a informalidade com que Baggio é conhecido e tratado pelos fornecedores da Indusparquet e; por fim, o fato de a empresa desconhecer que Aleixo trabalhava para o órgão ambiental do Paraná. 

Este último ponto, aliás, foi um tema abordado exaustivamente pelas testemunhas, que destacaram como a Indusparquet havia tentado descobrir mais sobre Aleixo. Curiosamente, ninguém na empresa parece ter feito uma simples busca na internet pelo nome de Aleixo. Vários sites trazem informações sobre a nomeação de Aleixo como chefe do órgão ambiental local e algumas das atividades de que participou durante o mandato.19

Depoimento de José Antonio Baggio. Foto (no sentido horário): Baggio, promotora Botomé, Aleixo, and juiz Emerson. Fonte: Tribunal de Justiça do Paraná

Depoimento de José Antonio Baggio. Foto (no sentido horário): Baggio, promotora Botomé, Aleixo, and juiz Emerson. Fonte: Tribunal de Justiça do Paraná

Três das testemunhas convocadas pela defesa para depor eram comerciantes de madeira que trabalham com a Indusparquet há décadas, segundo seus próprios relatos. Todos os três curiosamente repetiram a mesma narrativa, na mesma sequência, o que é um forte indicativo de que podem ter sido treinados.

Os comerciantes de madeira alegaram:

1. Baggio entrou em contato com eles perguntando se eles poderiam fornecer madeira de bracatinga

2. Todos disseram que não trabalhavam com esta madeira 

3. Algum tempo depois, Baggio entrou em contato novamente, desta vez para perguntar se conheciam alguém chamado André Aleixo

4. Todos disseram que não, mas se ofereceram para entrar em contato com outros madeireiros e perguntar sobre Aleixo

5. Eles falaram mais uma vez depois disso, quando disseram que ninguém nunca tinha ouvido falar desse nome antes.20,21

As declarações também tentaram minimizar alguns detalhes adicionais destacados pelos processos. Disseram que Baggio, apesar de ser um dos donos das maiores fabricantes de pisos do país, era muito acessível a todos os fornecedores e falava diretamente com eles, geralmente sendo chamado de "meu chefe" ou "meu amigo".22

Enquanto isso, os três funcionários da Indusparquet estavam afoitos para defender seu chefe. Todos afirmaram como é comum discutir uma comissão no primeiro telefonema e repetiram descrições quase literais sobre como cada um deles recebia até 30 ligações por dia de possíveis fornecedores, um número muito específico que também serve como pista de que eles podem ter sido treinados, recebendo orientações momentos antes das audiências.23

Dois anos e meio se passaram entre o primeiro pedido pela defesa da Indusparquet para ouvir essas testemunhas em 2018, sendo que muitos estão localizados fora do Paraná, o que criou mais complicações legais, e o interrogatório da testemunha final, que prestou declarações no início de 2021. 

Mata Atlântica Brasileira: Protegendo o que restou

"O Brasil é visto como uma enorme Amazônia", disse o ambientalista Mario Mantovani à Earthsight e Mongabay.

Mas ao longo da costa do Brasil e em áreas do interior, a Mata Atlântica tornou-se uma das florestas mais ameaçadas do país.

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Entre os réus,31 Aleixo negou ter pedido uma comissão ou ter trabalhado como consultor da Granatyr, embora os diálogos gravados pelos investigadores indiquem exatamente o contrário. Ele alegou que planejava deixar o órgão ambiental no início de 2017, embora isso seja irrelevante, já que as negociações ocorreram enquanto ele ainda estava no cargo. Ele afirmou que decidiu entrar em contato com a subsidiária da Indusparquet como parte de um exercício do que poderia fazer em seguida.

Ele negou ter usado seu cargo para acelerar a concessão da licença para habilitar o pátio de madeira de Granatyr para estocar e processar bracatinga e ainda explicou que decidiu encerrar as negociações com a Indusparquet quando percebeu que Baggio estava exigindo a entrega de uma grande quantidade de madeira enquanto ele ainda estava no cargo, o que contraria evidências das escutas telefônicas. 

No caso civil, os aparentes esforços da Indusparquet para atrasar o processo parecem ter dado frutos, pois um juiz tentou arquivar o caso em maio de 2022 por ter passado a data de prescrição. Os promotores recorreram desta decisão com base em uma decisão recente no STF. O caso segue em análise. 

Baggio ainda tem papel de destaque na Indusparquet

No processo criminal, o juiz Emerson Spak, absolveu Baggio, Aleixo, Puzyna e Granatyr de todas as acusações de corrupção. Ele alegou que a vantagem prometida (comissão) se destinava apenas a remunerar Aleixo por um serviço lícito prestado no âmbito das relações privadas com a Indusparquet e não constitui um ato ilícito.

A promotora Botomé recorreu da decisão, destacando que a mesma viola definições consolidadas de enriquecimento ilícito pelo Supremo Tribunal Federal32 e que as atividades paralelas de Aleixo eram incompatíveis com sua condição de funcionário público.

Em agosto de 2022, os juízes da segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná indeferiram o recurso após decisão unânime. Eles alegaram não haver provas suficientes para demonstrar o nexo de causalidade entre a vantagem oferecida a Aleixo e o fornecimento de informações privilegiadas a Baggio por ele. No entanto, fontes ouvidas no Ministério Público do Paraná confirmou à Earthsight e Mongabay que o caso não foi encerrado e estuda recorrer da decisão junto ao Superior Tribunal de Justiça ou a Supremo Tribunal Federal.

Aleixo foi destituído do cargo no início de 2017 após alegações de corrupção sem relação como caso

Em resposta a nossas alegações, a Indusparquet afirmou que Baggio foi inocentado na primeira e segunda instâncias das acusações da ação criminal e que o colegiado que julgou o recurso confirmou a decisão do Juiz Spak em decisão unânime. Além disso, a Indusparquet ressaltou que os registros judiciais "simplesmente confirmam uma negociação regular, com linguagem e tom comuns, onde preços, medidas e comissões de vendas são discutidos". A empresa afirma que em nenhum momento Aleixo se identificou como funcionário público e que Baggio e Faria só tomaram conhecimento de sua posição depois.

Procurado para comentar as investigações, Aleixo contou à Earthsight e Mongabay que as alegações do Ministério Público Estadual foram “infundadas” e “não tem como prosperar”. Ele ressaltou que foi inocentado das acusações da ação criminal, uma decisão confirmada em segunda instância, e que a ação cível foi extinta em primeira instância. Em relação a decisão da justiça, Aleixo afirmou que seguir em frente “com direção e provisão de Deus”. 

Puzyna disse à Earthsight e Mongabay que ele nunca comprou ou transportou madeira bracatinga para a serraria de Granatyr. Ele ressaltou que os recibos e autorização para transporte de madeira [DOFs] não mencionam o seu nome em qualquer lugar. Puzyna afirmou que o MP do Paraná errou ao abrir uma denúncia criminal a qual restou julgada totalmente improcedente mediante a sentença do Juiz de 1º grau [Juiz Spak] e que tal decisão foi confirmada em segunda instância.

Earthsight e Mongabay conversaram com especialistas sobre o contexto mais amplo das ações movidas no Paraná e sobre ações de fiscalização envolvendo permissão para corte e comércio de madeira na região. Mario Mantovani, coordenador da Fundação SOS Mata Atlântica, disse em uma entrevista que o Paraná havia “perdido totalmente o controle” sobre fiscalização nos últimos anos. De acordo com Mantovani, a região no entorno de União da Vitória – onde a investigação aconteceu – tem o maior índice de desmatamento no estado. “E o que eles fizeram foi desmontar o órgão ambiental... Não tem mais fiscalização. Não tem nada”.

Também conversamos com Renato Morgado, do Transparency International Brazil, que nos contou da dificuldade em se processar casos de corrupção no Brasil. Como visto anteriormente, o tempo gasto para ouvir varias testemunhas no caso do Paraná acabou levando a extinção da ação com o argumento de que o prazo de prescrição havia expirado. Em outubro de 2021, o pais promulgou mudanças para reduzir o período de prescrição por improbidade administrativa passando de oito para quatro anos. Sem o retrocesso jurídico, a ação cível teria seguido seu curso. 

Referindo-se a essas mudanças, Morgado ressalta: “A gente vive, de fato ,um momento de retrocessos no arcabouço legal e institucional anticorrupção. E isso vem acontecendo de forma muito veloz. (...) Então, esse conjunto de retrocessos, eles claramente dão um sinal de que a corrupção vai ser tolerada e não vai ser punida. Isso deixa os agentes privados e públicos mais dispostos a praticar atos de corrupção. 

Enquanto isso, a vida segue como se nada tivesse acontecido. Baggio ainda tem papel de destaque na Indusparquet e recentemente deu entrevistas sobre o valor da certificação e a importância de rastrear a origem da madeira.33

Aleixo, que foi destituído do cargo no início de 2017 após alegações de corrupção sem relação como caso34, foi convidado a trabalhar novamente para o governo do estado, desta vez como chefe regional da Secretaria da Justiça, Família e Trabalho do Estado do Paraná.35 Ele passou quase dois anos nessa função antes de sair do funcionalismo público e hoje tem um escritório em União da Vitória, onde atua como advogado autônomo defendendo – entre outros clientes – acusados de crimes ambientais. 

Nosso homem em São Paulo

Propinas em Bauru

Apesar de ter passado uma longa semana no escritório, Markus Otto Zerza, analista do Ibama, estava de bom humor ao responder e-mails no final da tarde de sábado.36

O homem de 56 anos trabalhava no Ibama há mais de uma década, mais recentemente na Unidade Avançada do órgão federal em Bauru, no estado de São Paulo. O trabalho não tinha glamour mas rendia a Zerza um salário decente37, o suficiente para mantê-lo e a sua esposa Marisa, enfermeira um ano mais velha, e seu filho em sua casa em um bairro residencial da cidade.

No entanto, Zerza queria mais. Naquela noite, em uma mensagem bem-humorada de uma de suas duas contas de e-mail pessoais38, ele procurou um pouco de trabalho extra e compartilhou os dados bancários de Marisa com alguém.

"Vê se anota esse endereço na tua agenda.....vc vai usar ele muito ainda.....hahahahahaahah [sic]"39

E ele tinha razão. O email foi enviado para Alberto Antonio Cezar, funcionário de longa data da maior empresa de pisos do Brasil, a Indusparquet, com conexões com os donos da firma, conforme demonstrado em registros judiciais.

Com um homem com livre acesso ao SISDOF, Cezar, de 64 anos40, poderia manipular o mercado em favor de seus pagadores. Zerza, que depois admitiu receber propina de Cezar, desempenhou esse papel com prazer. Juntos, a dupla embarcou em algo apontado como um esquema lucrativo e altamente ilegal, que durou muitos anos e envolveu a Indusparquet e um forte cartel de parceiros de negócios em sua rede.

Zerza compartilhou os dados bancários da esposa com Cezar em um email enviado em 29 de março de 2014, brincando "vc vai usar ele muita ainda". Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Zerza compartilhou os dados bancários da esposa com Cezar em um email enviado em 29 de março de 2014, brincando "vc vai usar ele muita ainda". Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Documentos encontrados pela Earthsight e Mongabay, incluindo arquivos judiciais, relatórios policiais e transcrições de e-mails, reúnem evidencias da profunda cumplicidade da Indusparquet nos supostos negócios corruptos.

Tais documentos expõem como a empresa lucrou muito ao contornar ilegalmente as regras destinadas a proteger as florestas críticas para o clima.

Foto de Markus Otto Zerza e a esposa Marisa incluída nos autos da PF e obtida pela Earthsight and Mongabay. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Foto de Markus Otto Zerza e a esposa Marisa incluída nos autos da PF e obtida pela Earthsight and Mongabay. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Cezar inundou o funcionário do Ibama com pedidos, mês após mês, ano após ano. De acordo com documentos apresentados pela acusação, somente entre 2014 e 2016, Zerza realizou pelo menos 988 favores não só para a empresa de Cezar, a Indusparquet, mas para muitos outros "parceiros", inclusive pedindo a liberação dos "pátios suspensos" – madeira apreendida pelo próprio órgão de Zerza por descumprimento das regras – ou pedindo que os estoques de madeira sejam adicionados, ajustados ou seu prazo de validade e outros parâmetros sejam alterados, conforme mostram documentos judiciais.41

O Ministério Público Federal de São Paulo identificou que mais de 100 dessas tarefas estavam diretamente relacionadas a e-mails mencionando o pagamento de propina.42,43 Apesar das evidências explosivas, os investigadores acreditam que a trilha de dinheiro exposta é apenas a ponta do iceberg.

Recapitulando

A Operação Pátio, uma ação de repressão às práticas fraudulentas de madeira que há muito prevalecem no Brasil, começou com força. Lançada em maio de 2016, a investigação conjunta do Ibama e da Polícia Federal resultou naquilo que a PF descreveu como a maior apreensão de "madeira ilegal da Amazônia" na história do estado de São Paulo.

O carregamento no valor de US$ 2,5 milhões veio da Indusparquet. Acusada de várias práticas ilegais, a gigante de pisos recebeu multas no valor de R$ 995.762 (equivalente a US$ 259.030 na época) e foi temporariamente proibida de comercializar madeira.44,45 Porém, o cenário político no Brasil mudou.

Sede da Indusparquet em Tietê, São Paulo. Fonte: Earthsight

Sede da Indusparquet em Tietê, São Paulo. Fonte: Earthsight

A Earthsight relatou anteriormente como o Ibama havia dado o pontapé inicial na Operação Pátio ao abordar a Polícia Federal em maio de 2016 com a preocupação de que um funcionário da agência estivesse envolvido na lavagem de madeira.46 O inquérito de dois anos resultante recebeu o nome do local utilizado para armazenar madeira, pátio.

A Operação levou não somente à apreensão recorde no final de maio de 2018, bens que o Ibama disse não estarem acompanhados das autorizações necessárias, como também desvendou um suposto esquema de fraude que deve ter permitido à Indusparquet esconder madeira extraída ilegalmente em meio a estoques legais.47

Agentes do Ibama inspecionam unidade da Indusparquet durante a Operação Pátio. Fonte: Ibama

Agentes do Ibama inspecionam unidade da Indusparquet durante a Operação Pátio. Fonte: Ibama

O sistema eletrônico Sinaflor/SISDOF48 do Ibama foi criado para acompanhar de perto a exploração madeireira e o comércio de madeira em todo o Brasil. Funciona de maneira semelhante à movimentação de dinheiro entre contas bancárias, alocando créditos virtuais aos concessionários florestais, detalhando as espécies e o volume de madeira autorizados a serem cortados, fichas que passam para quem compra a mercadoria.

Por lei, cada transação deve ser acompanhada de um documento de origem, ou DOF, atestando a origem e a legalidade da madeira. Mover ou possuir madeira sem os devidos papéis ou créditos é ilegal. Devido às dificuldades de policiar as vastas florestas na fonte, esse sistema é a ferramenta mais importante do país para tentar impedir a extração ilegal de madeira. Destina-se – ao menos em tese – a impedir que madeira ilegal seja comercializada e vendida, eliminando assim qualquer incentivo para cortá-la.

Como o mercado de madeira do Brasil deveria funcionar. Fonte: Perazzoni et al., 2020

Como o mercado de madeira do Brasil deveria funcionar. Fonte: Perazzoni et al., 2020

No caso Indusparquet, o Ibama relatou inicialmente ter descoberto 10.740 metros cúbicos de créditos fictícios de madeira – uma grave violação da lei brasileira. O principal armazém da gigante de pisos na cidade de Tietê, em São Paulo, foi temporariamente proibido de comercializar madeira, e mais multas se seguiram.

No entanto, conforme a Earthsight revelou posteriormente, a maior multa da Indusparquet foi cancelada e a madeira confiscada foi retornada à empresa sob condições duvidosas em junho de 2019.49 A mudança, tachada como "vergonhosa" por Elisabeth Uema, secretaria executiva da Ascema, a Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista do Meio Ambiente, é um dos vários exemplos em que instâncias de funcionários do Ibama indicados pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, que assumiu o cargo em janeiro daquele ano, aparentemente minaram os esforços para fazer cumprir as leis ambientais.

A maior multa da Indusparquet foi cancelada e a madeira confiscada foi retornada à empresa sob condições duvidosas

No entanto, a Indusparquet permanece sob escrutínio. Em outro lugar do estado de São Paulo, um procurador da República ligou as informações entre a gigante de pisos, seu homem em São Paulo, e sua marionete dentro do sistema.

Cartel de créditos

O procurador da República Pedro Antonio de Oliveira Machado acabou entrando com uma ação civil em Bauru no final de março de 2021 contra a Indusparquet e seis empresas com as quais fazia negócios dando continuidade às descobertas feitas pela Operação Pátio.50 A Earthsight e a Mongabay obtiveram uma cópia do documento, juntamente com arquivos do tribunal que mostram que Zerza e Cezar estiveram realmente ligados.

Listadas ao lado da Indusparquet também como réus estão as empresas Baurupisos, Thais Cristina Teixeira Brasil, Ulimax Esquadrias de Madeira, Indústria Madeireira Uliana, Demarchi & Co e Faurtil Fábrica de Urnas Tietê (também chamada de Jonacir Amorim).

O procurador da República também entrou com uma ação criminal contra Zerza e Cezar por corrupção. As ações cível e criminal aguardam julgamento.

Cezar confessou à PF ter trabalhado para a Indusparquet, como revela um documento do MPF-SP obtido por Earthsight and Mongabay. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Cezar confessou à PF ter trabalhado para a Indusparquet, como revela um documento do MPF-SP obtido por Earthsight and Mongabay. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Com base em centenas de páginas de registros da Polícia Federal gerados pela Operação Pátio, o MP Federal de SP acredita que essas empresas conseguiram que Zerza, funcionário do Ibama, manipulasse o sistema de créditos de madeira "de forma totalmente ilegal."51

Esses documentos são a base para as ações movidas pelo procurador. Eles revelam como o funcionário do Ibama solicitou e recebeu propina do funcionário da Indusparquet para realizar esses serviços. Cezar foi denunciado como intermediário entre o agente do Ibama e as empresas.

Questionado pela polícia, Cezar confirmou que trabalhava no departamento de compras da Indusparquet52 enquanto documentos judiciais sugerem que ele também trabalhou como uma espécie de intermediário ou consultor ambiental para outros réus.53,54 De acordo com Machado, há evidências que mostram que Cezar se especializou em resolver empecilhos de DOFs, ajudando a madeira a ser movimentada sem problemas.55

Documentos judiciais mostram que ele também trabalhou como uma espécie de intermediário ou consultor ambiental para outros réus

Por meio do funcionário da Indusparquet, os parceiros comerciais da gigante de pisos foram acusados de tentar facilitar o funcionamento do sistema de créditos de madeira do Ibama para sua vantagem comercial. Apesar de seu papel oficial ser aparentemente modesto, Cezar, com sua rede de contatos em órgãos públicos, foi acusado de ter agido em nome da Indusparquet durante todo este processo – e em seu benefício.

Devolução de madeira apreendida, liberação de estoques de madeira para comercialização, ajuste de créditos de uma empresa, entre outros pedidos – Zerza deixou o banco de dados do Ibama inundado de "dados falsos e impróprios".56

O Ibama identificou ao menos 106 serviços realizados por Zerza entre 2014 e 2016 que estavam "diretamente relacionados" a e-mails mencionando propina

O Ibama identificou ao menos 106 serviços realizados por Zerza entre 2014 e 2016 que estavam “diretamente relacionados” a e-mails mencionando propina, de acordo com um relatório interno contido nos autos do processo e datado de 2017.57 Análises posteriores feitas pelo Ibama revelaram "inconsistências" em todos esses registros, o relatório demonstra.58

Como aponta o relatório do Ibama, isso provavelmente foi apenas a ponta do iceberg, já que provavelmente houve muito mais transações. A correspondência por e-mail tornou-se menos frequente no decorrer do período investigado, levando a agência a supor que outros meios de comunicação – entre os citados estão o Skype e o aplicativo de mensagens criptografadas WhatsApp – tornaram-se as ferramentas de referência para a realização de negócios.

Trecho extraído de um documento do Ibama que revela a ação de Zerza e referências à propina na troca de emails. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Trecho extraído de um documento do Ibama que revela a ação de Zerza e referências à propina na troca de emails. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

O relatório do Ibama se baseou em e-mails que a polícia obteve por meio de uma ordem da Justiça Federal, abrangendo mensagens enviadas desde duas contas de e-mail pessoais de Zerza e também enviadas para elas, entre 2014 e 2016. Termina com uma nota assustadora.

"Já no ano de 2017, período não contemplado pela quebra de sigilo telemático, mais 69 atendimentos foram realizados, apresentando as mesmas inconsistências, evidenciando a continuidade do modus operandi, que persiste até a presente data".59

Históricos de e-mails

Após a prisões de Zerza e Cezar no final de maio de 2018, o funcionário do Ibama admitiu à polícia ter recebido propina através da conta bancária de sua esposa para facilitar a liberação e manipulação de estoques de madeira para o funcionário da Indusparquet Cezar.

Ele também confessou ter burlado o SISDOF/Sinaflor muito tempo depois de quando já deveria ter perdido acesso ao sistema no final de setembro de 2014, período em as funções de gestão passaram para a Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo.60

As trocas de e-mails entre os dois descobertas pela Polícia Federal constituíram provas fundamentais nas investigações e, posteriormente, no processo do Ministério Público Federal.

O funcionário do Ibama admitiu à polícia ter recebido propina para facilitar a liberação e manipulação de estoques de madeira para o funcionário da Indusparquet

Segundo o que disse procurador da República à Earthsight e Mongabay, se a PF não tivesse quebrado o sigilo de e-mail, ele só teria identificado que Zerza havia feito entradas indevidas no sistema, mas nunca que tivesse recebido propina por isso.

Essas mensagens francas, informais e às vezes cômicas, ajudaram a Polícia Federal a identificar cinco pequenas transferências bancárias no total de R$ 2.900 (cerca de US$ 540) do funcionário da Indusparquet para a conta da esposa de Zerza em 2014 e 2015, de acordo com o processo. Os policiais também encontraram 15 transferências maiores, totalizando R$ 173.945,00 (cerca de US$ 34.400) de fontes não identificadas entre 2014 e 2017, que provavelmente estão ligadas ao esquema de suborno.

Em um documento judicial, o Ministério Público Federal afirma que "dezenas" de pagamentos a mais para a conta de Marisa ainda não foram rastreados.61

Zerza confessou à PF ter recebido propina paga na conta da esposa para facilitar a manipulação de créditos e liberação de madeira, a pedido de Cezar, como mostra documentos obtidos por Earthsight e Mongabay. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Zerza confessou à PF ter recebido propina paga na conta da esposa para facilitar a manipulação de créditos e liberação de madeira, a pedido de Cezar, como mostra documentos obtidos por Earthsight e Mongabay. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Cezar, por sua vez, negou ter pagado as propinas – uma declaração contraditória, dada a confissão de Zerza, o rastro de dinheiro que envolvia o seu nome e o e-mail descontraído que deu o pontapé inicial às ilegalidades, aquele que Zerza enviou a Cezar com os dados bancários de sua esposa "Vê se anota esse endereço [dados bancários] na tua agenda.....vc vai usar ele muito ainda....".

Poucos meses depois dessa mensagem, em 25 de agosto de 2014, Cezar havia encaminhado ao funcionário do Ibama uma mensagem do departamento de contas da Ulimax em resposta. O representante da Ulimax havia dito a Cezar que eles enviariam uma planilha e também aquilo que eles descreveram como "o pedido", além de transferir uma quantia acordada de R$ 2.200 (cerca de US$ 425).62

Email do departamento de contabilidade da Ulimax encaminhado por Cezar a Zerza em agosto de 2014. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Email do departamento de contabilidade da Ulimax encaminhado por Cezar a Zerza em agosto de 2014. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Isso parecia ser mais uma prova clara de corrupção. Mas Cezar tinha uma explicação criativa, dizendo à polícia ter pedido a Zerza para comprar um celular usado em Bauru, onde Zerza trabalhava.63 A compra, ele disse, nunca aconteceu.64 Ele nunca explicou por que ele queria que um funcionário do Ibama comprasse um celular usado, ou por qual motivo ele pagaria pela compra.

Correspondências de janeiro de 2015 indicam que a empresa Thais Cristina Brasil, uma das companhias acusadas no processo do Ministério Público Federal, queria que Zerza liberasse ilegalmente o estoque de madeira da empresa. Em 30 de janeiro de 2015, Cezar enviou ao servidor público um e-mail com o título "Desbloqueio de Pátio". O e-mail não tinha nenhum texto, mas continha quatro imagens anexadas: três continham detalhes importantes da companhia; a outra era a primeira página do formulário de pedido de liberação dos estoques.

Zerza contactou Cezar cedo em 27 de janeiro, dizendo que o Skype não tinha funcionado e pedindo para falar por e-mail. "Nada ainda?", ele perguntou.65

Email enviado em janeiro de 2015 revela que Thais Cristina Teixeira Brasil, uma das empresas citadas no processo judicial, pediu para que Zerza liberasse ilegalmente parte do seu estoque de madeira. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Email enviado em janeiro de 2015 revela que Thais Cristina Teixeira Brasil, uma das empresas citadas no processo judicial, pediu para que Zerza liberasse ilegalmente parte do seu estoque de madeira. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

"Nada ainda," Cezar respondeu seis minutos depois. "Falei com ela agora," ele disse, em referência à cliente corporativa, adicionando: "Falei que vc só vai poder fazer até o dia 30/01, ela disse que amanhã, sem falta, me manda os documentos".

E-mails similares analisados pela Earthsight e Mongabay indicam um padrão consistente: Cezar envia por e-mail os documentos ao servidor corrupto para realizar o pedido da empresa – seja a sua própria ou outras – antes de cobrar as devidas empresas por este serviço.66

Alberto Cezar, funcionário da Indusparquet, disse à Earthsight e Mongabay que ele foi incluído indevidamente em uma investigação aberta para averiguar a conduta de um funcionário público do Ibama. Ele declarou que alguma de suas mensagens obtidas na investigação foram interpretadas fora do contexto, e que nem ele nem sua empresa tiveram qualquer envolvimento com o suposto esquema e que ele terá a oportunidade de provar isso à justiça.

Mestre de marionetes

Apesar de a Indusparquet ter sido nomeada juntamente com outras empresas no processo, as ações movidas pelo MPF-SP apontam que a empresa estava no centro do suposto esquema, e era quem mais ganhava com ele.

Alguns dos outros réus no processo têm laços estreitos com a Indusparquet, sendo propriedade de membros da família Uliana, que cofundou a Indusparquet, comercializando madeira com ela ou atuando como distribuidora da mesma.67 Os procuradores afirmam que três delas – Baurupisos, Uliana e Faurtil – "mantiveram parcerias e/ou vínculos comerciais" com a Indusparquet.68

Em uma das vezes, o funcionário do Ibama Zerza gentilmente "ajustou" os créditos de madeira da Ulimax em agosto de 2014, eliminando 1.722 metros cúbicos de madeira de seus estoques, de acordo com o processo. Dois meses depois, fez a mesma coisa pela Uliana – duas vezes. Foram outros 3.848 metros cúbicos de madeira adulterada.

O promotor calcula que a Indusparquet obteve benefícios de R$ 154.372.773 (equivalentes a quase 30 milhões de dólares hoje)

O procurador da República afirma que outras quatro empresas se beneficiaram quando Zerza liberou os estoques de madeira que estavam suspensos por inatividade: Demarchi (que na época detinha 297 metros cúbicos de madeira avaliados em R$ 575.510), Faurtil (duas vezes, em fevereiro de 2014 e novamente em fevereiro de 2015), Baurupisos (que obteve benefícios estimados em R$ 1.636.317) e Thais Cristina Teixeira, em fevereiro de 2015.69

A Indusparquet, empregadora de Cezar, foi supostamente a maior beneficiária do esquema. Em três ocasiões distintas – em junho de 2014, outubro de 2014 e fevereiro de 2015 – quando a gigante de pisos aguardava sua nova licença de operação, Zerza registrou "licenças de conversão" que lhe permitiram transformar créditos de madeira serrada para outros produtos. Documentos analisados pela Eartsight apontam que durante esse período, para facilitar ainda mais a manipulação da base de dados pela Indusparquet em benefício próprio, a empresa teve acesso direto ao SISDOF, podendo converter créditos de um produto específico para outro sem qualquer restrição.

O procurador calcula que a Indusparquet obteve benefícios de R$ 154.372.773 (equivalentes a quase 30 milhões de dólares hoje) como resultado. Desde a primeira entrada ilegal de dados por Zerza em junho de 2014 até janeiro de 2017, foram produzidos 19.753 metros cúbicos de créditos de madeira à Indusparquet, gerados por meio de 591 transações de conversão, quase o dobro do volume de créditos fictícios que agentes do Ibama haviam descoberto inicialmente durante a Operação Pátio.70

Diagrama no documento da PF resumindo a movimentação de madeira entre a Indusparquet e outras empresas citadas no processo judicial no período 2014-2016. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Diagrama no documento da PF resumindo a movimentação de madeira entre a Indusparquet e outras empresas citadas no processo judicial no período 2014-2016. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Os autos judiciais também sugerem que a Indusparquet negociava regularmente madeira com as suas contrapartes acusadas. Em resposta ao Ministério Público Federal, o Ibama disse que identificou, entre 2014 a 2016, 74 transações entre a gigante de pisos e as demais empresas mencionadas na ação judicial.71

Por exemplo, nesse período, as empresas trocaram 1.245 metros cúbicos de madeira no valor de R$ 3.370.652. A Indusparquet forneceu 517 metros cúbicos do material – 443 metros cúbicos para Uliana, 42 metros cúbicos para Faurtil e 32 metros cúbicos para Baurupisos – e recebeu de Uliana 729 metros cúbicos em valor superior a R$ 2,5 milhões.72 Considerando que isso inclui apenas o que os investigadores federais conseguiram rastrear, os volumes reais de madeira negociados entre eles provavelmente são muito maiores.

Referindo-se à gigante da produção de pisos, constam nos autos: "Inicialmente cumpre anotar que a requerida não nega que seu preposto Alberto Antonio Cezar ofereceu, prometeu e entregou vantagem indevida (propina) ao ex-servidor público do Ibama, Markus Otto Zerza, através de sua esposa, para que fossem liberadas madeiras e homologados pátios, nos sistemas informatizados do Ibama –SISDOF, para as empresas que tinham relacionamento comercial/parcerias com ela (a requerida Indusparquet)".73

Cezar contou que ele respondia "diretamente" a José Antonio Baggio no dia a dia, diz, já que Baggio estava "ligado mais a parte de compras na empresa"

Quando todo o esquema foi descoberto, Cezar, do departamento de compras da Indusparquet, pediu ajuda a ninguém menos que Baggio, o coproprietário da Indusparquet, uma evidência curiosa que pode indicar que o suposto esquema de lavagem de madeira teve aprovação nos níveis mais altos, e vinha ocorrendo com a benção de seu cofundador. Por que outro motivo um funcionário do setor de compras de madeiras entraria em contato com uma pessoa com um status tão alto em uma empresa com mais de 500 funcionários ao ser detido?

Preso em 24 de maio de 2018, Cezar, de acordo com boletim de ocorrência da Polícia Federal, "Nesse momento, entrou em contato com Jose Antonio Baggio, diretor da empresa Indusparquet, para comunicar sobre sua prisão e para saber se a empresa iria indicar algum advogado".74 No dia a dia, diz, ele respondia "diretamente" a Jose Antonio Baggio já que ele estava "ligado a parte de compras na empresa."75

Ao ser preso em maio de 2018, Cezar, segundo documento da PF, disse que respondia "diretamente" ao cofundador da Indusparquet, José Antonio Baggio. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Ao ser preso em maio de 2018, Cezar, segundo documento da PF, disse que respondia "diretamente" ao cofundador da Indusparquet, José Antonio Baggio. Fonte: Polícia Federal / Ministério Público Federal de São Paulo

Corrida desesperada

O procurador da República Pedro Antonio de Oliveira Machadoagora enfrenta uma corrida contra o tempo para levar a Indusparquet e os outros réus à justiça.

A ação civil contém acusações contundentes: corrupção ativa e passiva dos envolvidos, falsidade ideológica e inserção de dados falsos no banco de dados do governo para tentar obter benefícios indevidos. Também argumenta que as ações dos réus prejudicaram a governança pública ao atrapalhar a capacidade do órgão ambiental Ibama de fazer cumprir a lei.

Em paralelo, corre a investigação policial ainda em andamento. Temendo que a lei brasileira permita que as acusações de corrupção sejam descartadas por exceder o prazo para prescrição do crime (neste caso, 5 anos desde que os primeiros elementos foram revelados), o Ministério Público está vasculhando centenas de páginas de provas para apresentar os casos a tempo. A pilha cresce a cada 90 dias, quando chegam atualizações sobre as investigações da polícia.

Se condenados, a Indusparquet e os demais réus no processo seus aliados enfrentarão um duro golpe. Entre as possíveis punições na ação cível estão multa de até um quinto do faturamento bruto das empresas, indenização por danos morais e perda de bens, direitos ou benefícios obtidos por meio de suas infrações. Eles também enfrentam suspensão de atividades como a comercialização de madeira, proibição do uso do sistema de créditos do Ibama e de pátios de madeira por ao menos dois anos. Eles podem ainda ser proibidos de receber subsídios ou empréstimos de órgãos públicos por um período entre um e cinco anos.

Em entrevista à Earthsight e à Mongabay, o promotor falou de outro obstáculo: um juiz local em Bauru, em junho de 2021, ordenou que a ação civil fosse dividida em vários casos, decisão mantida após apelação.

Machado foi firme, ajuizando diversas ações criminais e cíveis contra os réus

"Essa separação vai ser ruim para a ação civil pública", ele falou. "Por que? Porque existe um elo entre as empresas, ne? O elo é o empregado da própria" – o suposto intermediário Cezar – "e o elo é o fato dessas empresas terem negócios."

"Existe um motive pelo qual eu deixei elas todas na mesma ação".

Machado segue firme, ajuizando diversas ações criminais e cíveis contra os réus. A ação cível que constitui o objeto deste relatório continua em andamento, embora agora inclua apenas a Indusparquet como ré. O processo foi desmembrado e outras ações cíveis foram abertas contra todas as outras empresas envolvidas no suposto esquema de "lavagem" de madeira, a exceção da empresa Uliana.

Embora os detalhes dos processos criminais, incluindo as partes nomeadas em cada um, estejam sob sigilo de justiça, o ex-funcionário do Ibama Zerza, sua esposa e o funcionário da Indusparquet Cezar estão sendo acusados de corrupção e, se condenados, podem cumprir até 12 anos de prisão. O caso aguarda julgamento.

Em relação às acusações feitas pela Polícia Federal, Marisa se defendeu dizendo que achava que o dinheiro transferido para sua conta bancária estava relacionado ao trabalho de consultoria de Zerza, uma explicação que não convenceu Machado.

"Ele [Zerza] é quem tem que fiscalizar e multar se tiver alguma irregularidade. E ai, ele vai lá e presta assessoria para empresa e ainda cobra por isso. Quer dizer, é uma coisa totalmente incompatível" (…) "Ele viola os deveres de lealdade com a administração. Um dos deveres que o servidor público tem é a de lealdade com a administração pública", disse o procurador.

Zerza foi demitido do Ibama em decreto ministerial em março de 2021. Fonte: Diário Oficial da União

Zerza foi demitido do Ibama em decreto ministerial em março de 2021. Fonte: Diário Oficial da União

As ações civis contra a Indusparquet e as outras empresas do setor madeireiro, por sua vez, concentram-se na Lei Anticorrupção de 2013 que responsabiliza pessoas jurídicas pela corrupção, independentemente de seus gerentes ou diretores saberem o que estava acontecendo.76

Essa lei, apelidada de Lei da Empresa Limpa, decorre de dois tratados internacionais – a Convenção de Mérida sobre o combate à corrupção e a Convenção de Palermo sobre o crime organizado transnacional – e permite o ajuizamento de ações judiciais se os promotores tiverem evidências de que a empresa envolvida se beneficiou de corrupção ou de algum ato que tenha impedido a fiscalização.

O caso de Zerza atende a essas condições, argumenta Oliveira Machado, que explicou o arcabouço legal com o exemplo do suborno de um burocrata.

"Juridicamente, a corrupção existe se eu oferecer a propina", ele explica. "Não preciso nem pagar, só o fato de eu oferecer já é um crime de corrupção passiva do servidor".

"O servidor, por sua vez, ele não precisa receber [o dinheiro]. Se ele solicitar, ele já praticou o crime de corrupção ativa, independente de ele receber".

Cezar continua trabalhando na sede da Indusparquet em Tietê

Contatada para comentar o caso, a Indusparquet negou ter cometido qualquer delito e declarou não haver ligação entre a Operação Pátio e a ação judicial do Ministério Público Federal. A Indusparquet apontou que a ação judicial não mostra nenhum dano ambiental causado pela Indusparquet e envolveu "meras questões sobre informações administrativas fornecidas ao Ibama". A empresa ainda sustenta que não tinha nenhum relacionamento ilegal com os funcionários do Ibama. 

Em resposta ao pedido de comentários, Uliana afirmou que estava disponível para esclarecer os fatos uma vez que o caso tivesse sido processado, mas até que o tivesse feito, relatar sobre ele poderia causar danos irreparáveis à empresa.

Ulimax disse à Earthsight e à Mongabay que não havia provas de que Zerza havia agido em nome de sua empresa ou que havia contratado os serviços de Zerza para cometer atos ilegais. No entanto, não nega ter usado os serviços de Zerza, afirmando que a contratação do funcionário do Ibama ocorreu apenas "para auxiliar a empresa no ajuste do estoque mantido no sistema do Ibama" e que tal ajuste não estava sendo possível devido à inconsistências no próprio sistema. Eles contestaram a extensão das penalidades requeridas pelo Ministério Público, afirmando que se as penalidades envolvidas fossem calculadas corretamente de acordo com a legislação pertinente, "o valor da multa, se devido, cai consideravelmente".

Baurupisos disse à Earthsight e à Mongabay que considerando que todos os dados foram extraídos dos autos da ação civil pública e do inquérito da PF, nenhuma informação pode ser considerada nova aos olhos dos administradores da empresa, colaboradores ou parceiros. Entretanto, destacou que as provas no caso estão sob sigilo de justiça e que, por conta disso, reserva-se o direito de usar medidas legais contra qualquer pessoa que publique informações que possam ser prejudiciais a imagem da empresa.

O procurador da República confirmou que a ação civil pública, base do nosso relatório e que contem provas das acusações contra a Indusparquet e demais réus, incluindo a Baurupisos, eram de livre acesso e ainda estão livres para serem utilizadas pela Earthsight e Mongabay já que tais documentos foram obtidos antes de serem colocados sob sigilo de justiça. As novs ações protocoladas individualmente pelo MPF de São Paulo contra as empresas, incluindo a Baurupisos, foram colocadas sob sigilo posteriormente.

Não recebemos uma resposta das empresas Demarchi, Faurtil e Thais Cristina Teixeira.

Apesar de admitir ter recebido propina de Cezar para burlar o sistema DOF por meio da conta bancária da esposa, Zerza permaneceu empregado e recebendo salário no Ibama por quase três anos após as denúncias, e só foi demitido em 4 de março de 2021 por decreto ministerial de estado.77

Descrevendo o Ibama como um grande colaborador da investigação, o promotor Machado, no entanto, alega quea agência ignorou evidencias dos crimes dentro de sua estrutura por anos. O promotor está determinado a terminar o trabalho. Enquanto isso, Cezar continua trabalhando na sede da Indusparquet em Tietê, São Paulo.

***

As evidências usadas como base na ação civil pública em São Paulo oferecem uma compreensão sobre como um funcionário da Indusparquet supostamente trabalhou com um funcionário público para burlar o sistema nacional de créditos de madeira do Brasil, em intervalos regulares, ao longo de anos. As evidências no caso param em 2017. No entanto, a lavagem de madeira através de bancos de dados do governo continua sendo comum no Brasil hoje. O Ibama continua a aplicar multas às empresas por estoques de madeira industrializada e por discrepâncias entre os volumes e espécies de madeira reais e os declarados em posse das empresas todos os meses. Os próximos capítulos revelam como os fornecedores da Indusparquet em outras partes do Brasil também foram multados de forma semelhante por negociar madeira de origem duvidosa.

Amigos influentes

Flagrado

A embarcação L. Soares rastejava pelas águas densas do rio Mamuru. Menos de 50 quilômetros adiante, o rio desaguaria no poderoso Amazonas. Era meado de novembro no município de Parintins, no estado do Amazonas, um dos meses mais quentes do ano. A balsa seguia lenta por conta da carga pesada composta por milhares de toras de ipê e massaranduba recém-cortados. 

Os sons habituais da floresta, pontualmente interrompidos pelo estrondo ocasional de madeireiras ou outras máquinas, deram lugar a um barulho mais incomum – o zumbido de uma aeronave se aproximando rapidamente. Era um helicóptero do setor especial da Polícia Federal. A equipe havia sido destacada como parte da Operação Verde Brasil 2, um novo esforço governamental para reprimir a extração ilegal de madeira. Uma ação que Bolsonaro foi forçado a lançar em resposta à inédita atenção internacional sobre os níveis crescentes de desmatamento no Brasil, desencadeados pelos incêndios florestais de agosto de 2019. 

Em apenas algumas horas, a balsa estava repleta de agentes da PF, seus documentos verificados e a descoberta de que sua preciosa carga era totalmente ilegal. A polícia apreendeu 3.418 metros cúbicos de madeira que estavam sem as informações corretas nas licenças de acompanhamento de origem da madeira (DOFs) naquele dia. Eles descobriram toras tropicais de alto valor (que também são frequentemente mais ameaçadas) sendo declaradas como madeira de espécies com valores de mercado muito mais baixos, uma artimanha comum usada por madeireiros em todo o mundo. A madeira estaria teoricamente a caminho de Belém de onde deveria ser exportada. 

"Viramos o satélite para lá, começamos a olhar aquela área e fomos derrubando uma atrás da outra, na sequência"
Alexandre Saraiva, ex-superintendente da PF no Amazonas

O ex-superintendente da PF no Amazonas Alexandre Saraiva, idealizador da operação, lembrou como tudo começou em uma recente entrevista à Earthsight e Mongabay. 

"Na semana do dia 15 de novembro, lá para o dia 12, os agentes chegaram para mim e falaram assim: 'O satélite está mostrando lá uma movimentação grande de balsas lá no sul do estado, nos rios. Não dá para ter certeza absoluta que é madeira, mas tudo levar a crer que seja'.

A apreensão da PF aconteceu na divisa entre Amazonas e Pará em março de 2021, como parte da Operação Hadroanthus. Foto: PF Amazonas / Sinal de Fumaça

A apreensão da PF aconteceu na divisa entre Amazonas e Pará em março de 2021, como parte da Operação Hadroanthus. Foto: PF Amazonas / Sinal de Fumaça

"Prendemos o comandante porque o que constava da Guia Florestal, [no Pará, os DOFs são chamados assim] não era o que estava sendo transportado na balsa. Viramos o satélite para lá, começamos a olhar aquela área e fomos derrubando uma atrás da outra, na sequência".

A apreensão de madeira do L. Soares desencadeou uma série de outras apreensões pelo Amazonas e Pará, e marcou o início da Operação Handroanthus, batizada com o nome de uma das madeiras mais procuradas no Brasil, a madeira do ipê. 

A Operação Handroanthus tornou-se oficialmente a maior apreensão de madeira na história da Amazônia brasileira

No final de dezembro de 2020, a imprensa já informava que uma quantidade gigante – 131.000 metros cúbicos – de madeira havia sido apreendida pela polícia durante a operação. E em abril de 2021, esse número saltou para 226.760 metros cúbicos de madeira. A Operação Handroanthus tornou-se oficialmente a maior apreensão de madeira na história da Amazônia brasileira. O valor total da madeira apreendida em todos os pátios e outras áreas – localizadas principalmente nos estados do Amazonas e Pará – foi estimado pelas autoridades em mais de 25 milhões de dólares. Pelos cálculos da Earthsight, seu valor de varejo quando vendido como piso acabado no exterior teria sido uma ordem de grandeza ainda maior, de US$ 448 milhões, quase meio bilhão de dólares americanos.78

Um homem de ação

Ricardo Salles estava em movimento. Seu telefone tocava sem parar há meses e sua agenda estava cheia de reuniões com membros agitados do lobby madeireiro do Brasil. A Operação Handroanthus deixou assustados fornecedores de madeira por toda a Amazônia. Os madeireiros tinham que honrar com ordens de compra. O único problema era que grande parte de sua madeira havia sido apreendida, colocada sob a guarda do Exército do Brasil, (que colaborou na Operação Handroanthus) enquanto seu destino era decidido pelos tribunais.

Mas Salles não era um homem de esperar que a justiça fosse decidida nos tribunais. Na verdade, desde sua nomeação como Ministro do Meio Ambiente em janeiro de 2019, ele fez questão de não perder nenhuma oportunidade de usar sua posição para facilitar a indústria madeireira brasileira e ajudá-la a evitar que fosse acusada de estar do lado errado da lei.

Ele já havia tido duas reuniões com um grupo de indivíduos particularmente preocupados, entre eles, um jovem político chamado Rafael Dacroce. Rafael, vereador de uma pequena cidade do estado de Santa Catarina, e um grupo de outros políticos e madeireiros com investimentos no Pará estavam ansiosos para um encontro com Salles para discutir as apreensões.

Rafael Dacroce é neto de Walter Dacroce, proprietário de uma fazenda chamada Francine II no estado do Pará. Francine estava entre os alvos das apreensões de madeira da polícia durante a Handroanthus. Chamado de “grileiro profissional” pela revista Istoé, o patriarca da família Dacroce fez parte de uma onda de colonos que ocuparam terras no Pará nos últimos 15 anos. 

Esta foi uma reunião em meados de março de 2021 em que Salles teria feito planos para visitar o Pará, para verificar a situação das toras apreendidas durante a Handroanthus.

Rafael Dacroce postou uma foto com Salles logo após a reunião: 

"Sabe aquela foto que você tira cheio de orgulho e esperança? Ou aquela que você vai imprimir e colocar na parede do seu escritório? Pois é essa! Eu acredito no Brasil, Ministro do Meio Ambiente, Sr. Ricardo Salles!!"

Rafael Dacroce publicou uma foto com Salles no Facebook em 2021. Fonte: Rafael Dacroce / Facebook

Rafael Dacroce publicou uma foto com Salles no Facebook em 2021. Fonte: Rafael Dacroce / Facebook

Posteriormente questionado sobre a reunião, Rafael Dacroce contou a repórteres que Salles havia prometido olhar este caso e convidar o presidente do Ibama e outros políticos a fazerem o mesmo. "Ele quis entender, mas em momento nenhum ele fez um pré-julgamento de olha, ah, vocês estão certos, vamos liberar a madeira amanhã".79

Mas acontece que isso foi exatamente o que Salles tentou fazer.

A primeira parada na jornada de Salles foi uma pequena vila no município de Santarém, no estado do Pará. Encontrando-se com membros do setor madeireiro, ele postou um Tweet em 31 de março anunciando que ele havia pessoalmente verificado a origem de algumas madeiras e comprovado sua legalidade. 

“Há gente séria fazendo o trabalho direito. Não é correto demonizar todo o setor madeireiro. É preciso identificar os criminosos e puni-los duramente, mas sem generalizar”, ele declarou em outra postagem nas mídias sociais no mesmo dia. 

A primeira parada na jornada de Salles foi uma pequena vila no município de Santarém, no estado do Pará

Uma semana depois, Salles voltou ao Pará com uma comitiva de políticos. O grupo incluía Zequinha Marinho, senador pelo estado do Pará. Junto da comitiva, estava a presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados que também fez parte da delegação brasileira enviada para a COP26 em Glasgow, em 2021.

Marinho e diversos outros políticos vinham implorando a Salles que fizesse algo sobre a Handroanthus por semanas. Na verdade, a própria assessoria de imprensa de Marinho admitiu que ele tenha procurado por Salles depois de ter sido contactado por influentes lobistas do setor madeireiro brasileiro, a Associação das Indústrias Exportadoras de Madeiras do Estado do Pará (Aimex), e a Associação da Cadeira Produtiva Florestal da Amazônia (Unifloresta)80

O grupo finalmente chegou ao pátio às margens do rio Aruã. Esse era o local onde a madeira da fazenda Francine II era depositada antes de ser carregada em embarcações e enviada paras processamento em várias serrarias locais. Este tinha sido um dos locais da operação dos policiais. Segundo as investigações, mais madeira foi apreendida nesta área do que em qualquer outra – 18 por cento do total.81

Posando diante de uma placa com o nome da fazenda proprietária do pátio de madeiras, Salles apareceu para atestar a legalidade do material apreendido. “Esse pátio, você vê por propriedade. Cada propriedade com as etiquetas que identifica de qual talhão é, dentro de cada talhão, qual seção, dentro da seção, qual é a árvore. A árvore tem um número, que por sua vez tem uma localização exata, tem uma geolocalização das árvores”82

Alexandre Saraiva, o chefe de polícia que orquestrou as apreensões, descreveu a cena para a imprensa logo após a visita de Salles. “Salles chegou a descer de helicóptero do Ibama em uma das fazendas dos Dacroce usadas na extração ilícita de pelo menos 43 mil toras cortadas irregularmente”.83

Rafael Dacroce voltou a Instagram ainda no dia seguinte, incapaz de esconder a animação com a visita oficial. Ontem tivemos a grata satisfação de recebermos em Santarém o Ministro do Meio Ambiente, Sr. Ministro Ricardo Salles, juntamente com outras autoridades para fiscalizarem a legalidade da extração de madeiras no Estado do Pará, oriundas de Projetos de Manejos Sustentáveis! Esse é o Brasil que queremos” ele disse. 

A interferência de na Operação Handroanthus voltaria para assombrá-lo

Como se viu, a interferência de na Operação Handroanthus voltaria para assombrá-lo muito em breve.

Incapaz de engolir a intervenção de Salles, Saraiva escreveu uma carta ao STF uma semana após a visita do ministro ao pátio da fazenda Francine II. Na carta datada de 14 de abril,84 ele apresentou provas descobertas pela Operação Handroanthus e acusou Salles de defender madeireiros e de trabalhar para descreditar as investigações policiais. Ele disse que Salles agiu como um verdadeiro defensor da causa da exploração madeireira. 

Trecho da carta enviada por Saraiva ao STF detalhando a colaboração entre o setor madeiro e Salles na tentativa de impedir a investigação. Fonte: Alexandre Saraiva

Trecho da carta enviada por Saraiva ao STF detalhando a colaboração entre o setor madeiro e Salles na tentativa de impedir a investigação. Fonte: Alexandre Saraiva

Saraiva foi afastado do cargo de Superintendente da PF no Amazonas e foi rebaixado no dia seguinte.

Em má companhia

As alegações do superintendente de PF logo foram confirmadas. Ainda no mesmo mês, em entrevista à rádio CBN, Salles admitiu que havia sido pressionado a agir para liberar a madeira apreendida na Operação Handroanthus a pedido de vários políticos, incluindo Marinho.85

Em maio de 2021, os tribunais do Pará e do Amazonas decidiram que a madeira apreendida na Operação Handroathus deveria ser liberada. A decisão do juiz amazonense foi compartilhada com orgulho por Salles em sua conta no Twitter. A ordem do juiz paraense veio na mesma semana em que Salles visitou novamente o Pará, desta vez para supervisionar o Ibama e as operações policiais no local.

Ainda assim, a questão não foi encerrada – em junho, a pedido da PF, a ministra do STF Carmem Lúcia ordenou a suspensão das decisões dos juízes do Amazonas e do Pará para liberar a madeira. Ela disse que o pedido policial havia apresentado “fatos gravíssimos” e que a decisão de liberar os “produtos dos crimes investigados” era prematura e poderia prejudicar a investigação.86

Ainda naquele mês, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de fiscalização que monitora a independência do sistema judiciário e realiza audiências disciplinares quando são detectadas irregularidades, iniciou uma investigação sobre a conduta do juiz Antonio Campelo. Campelo foi o juiz do Pará que ordenou a liberação da madeira. Em 12 de dezembro de 2021, o CNJ decidiu que ele deveria ser afastado do cargo de juiz federal no Pará. 

A investigação descobriu que a decisão de Campelo de ordenar sumariamente a liberação da madeira ocorreu enquanto o juiz estava de férias, que sua intervenção precipitada violou o código de conduta do judiciário e que ele não agiu com imparcialidade e precisão. 

O STF autorizou uma investigação para verificar se Salles havia obstruído uma ação policial sobre extração ilegal de madeira na Amazônia, especialmente no Pará

Em relação ao próprio Salles, a carta de Saraiva ao Supremo pode ter custado o emprego do chefe de polícia, mas seu relato detalhado fez soar o alarme entre os principais promotores da capital do Brasil, estimulando-os a agir. No início de junho de 2021, o STF autorizou uma investigação oficial para verificar se Salles havia obstruído uma investigação policial sobre extração ilegal de madeira na Amazônia, especialmente no Pará. 

Duas semanas antes disso, uma outra investigação criminal sem relação com esta foi iniciada contra Salles, por sua suposta participação em esquemas ilegais de exploração madeireira de "caráter transnacional."87

Diante de uma pressão crescente que resultou de duas investigações do STF, Ricardo Salles renunciou ao cargo em 23 de junho de 2021. Seus dias de passeios de helicóptero para interromper as operações policiais na Amazônia foram interrompidos abruptamente. 

Onde há fumaça, há fogo

Um ministro renunciou, um chefe de polícia foi rebaixado e parte da madeira apreendida foi liberada em circunstâncias altamente duvidosas. Mas a Operação Handroanthus ainda não tinha parado de causar dores de cabeça.

Apesar da controvérsia em torno da madeira apreendida, em janeiro de 2022 o próprio advogado do presidente Bolsonaro, Frederick Wassef, interveio para garantir uma ordem judicial para liberar parte dessa madeira.88 Wassef não estava representando Bolsonaro nesta ocasião, mas sim uma madeireira chamada MDP Transportes, uma das empresas cuja madeira foi apreendida na operação. 

O advogado do presidente Bolsonaro, Frederick Wassef, interveio para garantir uma ordem judicial para liberar parte da madeira apreendida

A procuradora federal Raquel Branquinho criticou a decisão. Ela disse que a investigação foi prejudicada pela decisão de liberar parte da madeira apreendida na operação. Ela acrescentou que a liberação só deveria ter sido feita depois que a madeira fosse devidamente identificada, já que as tentativas dos madeireiros de legalizar a madeira de origem duvidosa foram objeto de investigação criminal.

A Earthsight decidiu investigar um pouco mais o caso, explorando inclusive onde a madeira associada ao escândalo pode ter ido parar. Demos uma olhada mais de perto em duas fazendas no Pará cuja madeira foi apreendida durante a Operação Handroanthus e, em ambos os casos, nosso caminho nos levou de volta a ninguém menos que nossa velha conhecida, a gigante brasileira de pisos e colecionadora de escândalos Indusparquet. 

Reportagem sobre a decisão da justiça, publicada no site Metrópoles. A manchete: "Wassef consegue liberar na Justiça madeira retida na gestão de Salles". Fonte: Metrópoles

Reportagem sobre a decisão da justiça, publicada no site Metrópoles. A manchete: "Wassef consegue liberar na Justiça madeira retida na gestão de Salles". Fonte: Metrópoles

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A MDP Transportes, empresa madeireira que Frederick Wassef estava representando, opera uma concessão no Pará e estava entre as empresas que tiveram sua madeira apreendida. No verão de 2021, a Polícia Federal no Amazonas detectou que, após as apreensões da Handroanthus, algumas das toras apreendidas começaram a desaparecer ou foram vendidas dentro dos pátios das empresas que foram foco da operação – embora elas devessem estar sob guarda policial.

Documentos policiais obtidos pela revista Carta Capital89 mostraram que entre junho e agosto de 2021, 31.500 metros cúbicos de madeira foram movimentados do pátio de toras da MDP Transportes no Pará. Isso aconteceu vários meses antes da ordem de liberação obtida por Wassef em janeiro de 2022, violando a suspensão estabelecida pelo STF em junho de 2021, que reverteu ordens anteriores de liberação das toras. 

Durante as investigações policiais sobre o misterioso caso de desaparecimento de madeira do pátio da MDP, uma análise de documentos oficiais da Earthsight mostra que a empresa estava ocupada vendendo sua madeira para clientes dispostos a fazer negócio. A empresa vendeu 550 metros cúbicos de toras de jatobá para duas serrarias em julho e em agosto, período coberto pela investigação policial. 

Nossa investigação nos levou de volta a ninguém menos que nossa velha conhecida, a gigante brasileira de pisos e colecionadora de escândalos Indusparquet

A Earthsight descobriu que madeira da mesma espécie foi vendida posteriormente por essas duas serrarias locais para a Indusparquet apenas alguns meses depois. Em outubro de 2021, a Indusparquet comprou 44 metros cúbicos de jatobá serrado deles.90

Não é possível ter certeza de que se trata da mesma madeira que havia sido apreendida anteriormente. De qualquer forma, MDP Transportes deveria ter gerado suspeitas para a Indusparquet muito antes disso. Uma análise mais profunda de registros públicos do Ibama com relação a uma das serrarias que fornecia essa madeira revela que ela já foi multada em quase US$200.000 por inúmeras irregularidades nos últimos anos, incluindo a falsificação de informações sobre a origem e os volumes de madeira em bancos de dados oficiais.91 MDP Transportes não retornou ao nosso pedido de resposta.

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A segunda propriedade que analisamos foi a Francine II, a mesma fazenda da família Dacroce alvo da Operação Handroanthus e que, na sequência, teve o seu pátio inspecionado por Salles. A propriedade também apresentava outros problemas. O processo pelo qual a família Dacroce adquiriu a posse de várias propriedades no Pará, entre elas Francine II, é repleto de contradições92. Diversas fontes acusam os Dacroce de apropriação de terras. 

O site da Indusparquet nos EUA promove pisos feitos com jatobá. Fonte: Indusparquet

O site da Indusparquet nos EUA promove pisos feitos com jatobá. Fonte: Indusparquet

De acordo com o ex-chefe da PF no Amazonas, o fato de que a legalidade do seu título de terras estar sendo questionada já deveria ser suficiente para anular todas as permissões de exploração madeireira concedidas para as terras.

“Uma grilagem de terras grotesca, grotesca”, Saraiva disse à Earthsight e Mongabay. 

Nossas investigações revelaram que, embora a família Dacroce possua onze outras propriedades na região, Francine II, nomeada em homenagem à irmã de Rafael Dacroce, Francine, é a única autorizada a realizar operações madeireiras. 

A concessão Francine II é uma área de 600 hectares de floresta densa no estado do Pará. Localiza-se entre os rios Mamuru, Tapajós e Amazonas. Contém mais de 20 espécies de árvores tropicais93 como ipê, jatobá, angelim, cumaru e tauari, algumas em risco de extinção e todas muito valorizadas pela indústria madeireira.

MDP Transportes foi multada em quase US$200.000 por falsificar informações sobre a origem e os volumes de madeira em bancos de dados oficiais

Mas o relatório de Saraiva ao STF acusando Salles de interferir na Operação Handroanthus também continha informações que punham em dúvida a legalidade da licença de corte de madeira da fazenda. A carta descreve várias falhas no Plano de Manejo Florestal de Francine II. 

O ex-superintendente da PF destacou que, além de títulos de terras ilegais, os agentes federais também identificaram crimes ambientais, como a exploração madeireira em áreas protegidas, conhecidas como Áreas de Preservação Permanente (APPs).94

Saraiva detalhou como o plano omitia a declaração de diversas áreas protegidas e como, em outros casos, foi observada a derrubada de árvores em áreas que haviam sido demarcadas como áreas protegidas.

Exemplo de documento detalhando desmatamento em Área de Preservação Permanente na Fazenda Francine II. Fonte: Denúncia enviada por Alexandre Saraiva ao STF em abril de 2021.

Example of logging in a Permanent Preservation Area at Francine II Farm. Source: image taken from Saraiva's complaint to the Supreme Court in April 2021

A Earthsight também descobriu novas evidências que mostram que, mesmo quando o escândalo em torno do ex-ministro atingiu seu pico em junho de 2021, os proprietários de Francine II estavam ocupados vendendo sua madeira para vários clientes locais. Entre eles está uma serraria chamada RSK Indústria Comércio de Madeiras, localizada a 800 quilômetros a leste, perto de Belém. Como analisado, grande parte desta madeira terminou destinada à Indusparquet. 

Uma análise dos documentos de transporte de madeira mostra que Francine vendeu 200 metros cúbicos de toras de cumaru para a RSK após as apreensões, em junho de 2021. Logo em seguida, entre junho e agosto de 2021, a serraria vendeu 110 metros cúbicos de madeira serrada da mesma espécie a ninguém menos que Indusparquet.95

Descobrimos que a RSK era um fornecedor regular da Indusparquet. E assim como a Francine II, a serraria também está acostumada a escândalos. Um exame dos dados disponibilizados pelo órgão ambiental Ibama – e de fácil acesso à própria Indusparquet, caso quisesse verificar – mostra que entre 2015 e 2018, a serraria RSK foi multada em nada menos que doze vezes. A RSK não retornou os nossos pedidos de resposta para comentar as acusações. 

A serraria RSK foi multada em nada menos que doze vezes

As multas são por lavagem de madeira, ou seja, por não possuir os documentos necessários para comprovar a origem legal de sua madeira, por não possuir as devidas autorizações de armazenamento de madeira, por inserir informações falsas nos bancos de dados oficiais de rastreamento de madeira do estado do Pará, por discrepâncias constatadas no volume de créditos de madeira (quantidade de madeira que a empresa está legalmente autorizada a vender) e por volumes declarados nas licenças de corte… e a lista continua longa. As multas totalizam 1,586 milhão de reais – uma gritante quantia de 320.000 dólares. 

A família Dacroce respondeu ao nosso contato e negou qualquer irregularidade. Eles afirmam terem todos os documentos e licenças necessárias exigidas pela legislação brasileira, incluindo registros ambientais e fundiários, incluindo licença de corte (Autef). Ainda afirmam que o manejo florestal é desenvolvido dentro dos parâmetros de sustentabilidade, que não houve desmatamento e que nunca receberam qualquer notificação de que a madeira foi extraída irregularmente ou das alegações apresentadas por Saraiva.

Eles ainda declararam que o objetivo da reunião de Rafael Dacroce com Salles era de chamar a atenção das autoridades competentes para as informações equivocadas e maldosamente noticiadas, mas que Salles nunca visitou a fazenda em si ou o pátio da empresa. Em resposta as nossas descobertas de que a RSK havia fornecido madeira da fazenda Francine II a Indusparquet, eles responderam: “Existe uma lei brasileira que proíba a venda de madeira legal?” 

Quando contactada por nossa equipe, a Indusparquet não fez qualquer comentário especificamente às conclusões deste capítulo, incluindo as multas aplicadas à RSK e MDP Transportes ou as acusações de grilagem ou corte ilegal de árvores feitas contra a Fazenda Francine II ou a família Dacroce.

Uma análise da Earthsight da cadeia de suprimentos mais ampla da Indusparquet no Pará revela que a RSK é sua maior fornecedora no estado e continuou fornecendo madeira para a empresa até pelo menos agosto de 2021. A serraria vendeu mais de 3.100 metros cúbicos para a Indusparquet entre 2018 e 2021.96 Isso significa que a RSK foi responsável por quase 20 por cento do volume total de madeira que a empresa comprou de seus mais de 81 fornecedores no estado. Se a Indusparquet sabia da reputação da empresa, e certamente deveria saber, a empresa não parecia se importar nem um pouco. 

Espécies invasoras

Terra de grileiros

No meio da floresta amazônica, um colono torce com entusiasmo pelo seu time de futebol favorito em uma das partidas noturnas do campeonato brasileiro exibido na TV enquanto bebe uma garrafa de cerveja gelada que veio direto de sua geladeira.

O ventilador de teto está ligado no quarto ao lado, onde as crianças estão se preparando para dormir. Pela janela, eles veem que luzes estão brilhando em outras partes da floresta. A escuridão total que existia antes é coisa do passado e o silêncio da noite agora é interrompido por sons de um rádio distante e uma máquina de lavar. Os cabos de energia que fornecem eletricidade para suas casas recém-construídas também estão conectados a postes de luz, que iluminam a estrada de terra batida. As coisas mudaram drasticamente nos últimos quatro anos dentro da terra indígena Ituna Itatá, localizada na bacia do rio Xingu, no estado do Pará.

A rede elétrica é apenas uma das mudanças ocorridas nas região após a chegada de várias levas de grileiros, garimpeiros e madeireiros, apesar de uma restrição imposta pela Fundação Nacional do Índio, Funai, em janeiro de 201197, proibindo o acesso de pessoas de fora à região.

A restrição de acesso foi determinada pela Funai após sinais de que povos isolados habitavam a floresta, o que criou a necessidade de que mais estudos sobre sua presença precisavam ser realizados. Junto com a portaria de restrição, a Funai nomeou oficialmente a região como 'Terra Indígena (TI) Ituna Itatá'.

Imagem capturada de um vídeo do Greenpeace que mostra desmatamento na TI Ituna Itatá. Fonte: Greenpeace Brasil

Imagem capturada de um vídeo do Greenpeace que mostra desmatamento na TI Ituna Itatá. Fonte: Greenpeace Brasil

A área abrange 142.000 hectares, distribuídos pelos dois municípios de Altamira e Senador José Porfirio, no Estado do Pará. A reserva funciona como entrada para a Terra do Meio, uma rede de 24 milhões de hectares de florestas protegidas98 criada para combater a grilagem generalizada, a extração ilegal de madeira, a mineração de ouro na região. A área é quase do tamanho de São Paulo, o centro financeiro do Brasil e uma das cidades mais populosas do planeta. Ituna Itatá, desta forma, deveria permanecer como uma parte inviolável do país, coberta por florestas densas, rios e córregos quase intocados e grande diversidade biológica.

A decisão de criar a TI em 2011 não foi fruto da benevolência do governo em exercício na ocasião. Na verdade, a decisão foi tomada após uma batalha judicial em torno da construção da polêmica hidrelétrica de Belo Monte, no coração da Amazônia, que ganhou as manchetes em todo o mundo e suscitou denúncias de celebridades de Sting a Sigourney Weaver no ano anterior.99

Junto com trabalhadores e investidores, a obra também atraiu invasores de terra

Um estudo realizado por empresas envolvidas no projeto durante o planejamento da barragem e divulgado em setembro de 2009 confirmou a presença de povos isolados na região, reafirmando o que já havia sido observado na década de 1970.100

Embora a autorização para a construção de Belo Monte deveria ter sido emitida somente após a conclusão do processo de declaração oficial de todas as terras indígenas afetadas pela barragem, essa demarcação nunca ocorreu.101 Com isso, a restrição de acesso emitida pela Funai, que deveria ser temporária, se tornou regra e precisa ser renovada periodicamente. Ituna Itatá continua sem as maiores proteções oferecidas que acontece com a demarcação oficial da terra, o que precisa ser feito por decisão presidencial.

O advento da barragem trouxe mais do que apenas oportunidades econômicas para a região. Junto com trabalhadores e investidores, a obra também atraiu invasores de terra. Altamira, no Pará, onde a barragem foi construída mais tarde, viu sua população dobrar – de 77.000 nos anos 2000 para mais de 148.000 uma década depois.102 Não havia espaço para tantos novos moradores e esse foi o contexto ideal para que as florestas ao redor da cidade se tornassem uma área a ser explorada, não apenas para moradia, mas para suas quantidades aparentemente ilimitadas de minerais e madeira.

Hidrelétrica de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, Pará. Fonte: Bruno Batista / VPR (licença CC BY 2.0)

Hidrelétrica de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, Pará. Fonte: Bruno Batista / VPR (licença CC BY 2.0)

Obstinação madeireira 

Dois novos colonos que chegaram à região no final dos anos 2000 sonhavam em dar um golpe de mestre. Eles estavam de olho na Fazenda Morro Alto, uma propriedade do interior de 3.829 hectares no meio do Ituna Itatá (representando 2,6 por cento de seu território).

Evandro Carlos de Oliveira e Wilson Paulo da Mota já conheciam a região. Eles haviam reivindicado previamente a posse de duas outras propriedades no mesmo Território Indígena. Juntas, as fazendas Sossego e Serra Dourada possuem área de 6.431 hectares e Morro Alto está localizado entre as duas. O acordo para adquirir o terceiro terreno foi assinado em outubro de 2009, apenas um mês após a divulgação do relatório de Análise do Componente Indígena pela Funai, quando já era conhecida a presença de povos indígenas isolados na área.

A dupla precisou ser pacientes. Em breve eles poderiam ganhar dinheiro com a venda de árvores derrubadas nas propriedades, provavelmente o verdadeiro motivo por trás da aquisição da terra. Mas para obter uma licença de exploração madeireira (conhecida como Autorização para Exploração Florestal – AUTEF), eles tiveram que concluir um longo processo exigido pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Pará (SEMAS).

Páginas da permissão de Autorização de Exploração Florestal (AUTEF) da fazenda Morro Alto. Fonte: SEMAS/PA

Páginas da permissão de Autorização de Exploração Florestal (AUTEF) da fazenda Morro Alto. Fonte: SEMAS/PA

Dada a sensibilidade da área, o processo foi demorado. Eles finalmente conseguiram obter uma licença de exploração madeireira em agosto de 2016 – sete anos após a primeira solicitação.

A análise foi longa e complexa, feita por alguns dos funcionários mais experientes e especializados da SEMAS. No entanto, apesar do empenho, a equipe foi negligente em um aspecto primordial: os especialistas se esqueceram de levar em conta uma evidência irrefutável – o fato de a Funai ter negado qualquer acesso à terra a pessoas de fora desde 2011. Na verdade, a análise publicada pelo Pará chegou a dizer que a licença de corte poderia ser emitida porque "não havia sobreposição da área com nenhum território indígena". Como veremos, o estado reconheceu que a área se sobrepôs aos territórios dos povos indígenas apenas alguns meses depois.

A extração de madeira começou assim que a licença foi emitida em 2016. Para cada árvore derrubada, não faltavam clientes, pois a região agora estava repleta de dezenas de serrarias. MadBrasil Eireli EPP e Canoer Industria e Comercio Importação e Exportação Eireli EPP foram dois desses novos negócios que chegaram à bacia do rio Xingu em 2016.

A extração de madeira começou assim que a licença foi emitida em 2016

Ambas as serrarias estão localizadas em Anapu, cidade que atraiu a atenção internacional em fevereiro de 2005, quando a missionária norte-americana Dorothy Stang foi assassinada, supostamente por defender a regularização fundiária de famílias de trabalhadores rurais e por protestar contra a violência das invasões de grileiros, madeireiros e fazendeiros.103

A Earthsight encontrou um nome muito familiar entre os compradores das madeiras de Evandro e Wilson. Com base em documentos oficiais de comercialização de madeira emitidos pela SEMAS, a descobrimos que essas duas empresas adquiriram três espécies diferentes de madeira cortadas na Morro Alto. Essa madeira seria enviada para um cliente localizado a quilômetros de distância da floresta e, de lá, poderia chegar ao restante do mundo. Esse cliente era ninguém menos que a Indusparquet.

As transações entre as serrarias e a sede da gigante de pisos em São Paulo ocorreram entre janeiro e fevereiro de 2017, gerando um volume de 137,69 metros cúbicos de madeira proveniente do território indígena.104

Seguindo o rastro de irregularidades

Em fevereiro de 2017, no mesmo mês em que a Indusparquet comprava madeira de dentro da reserva, os proprietários da fazenda receberam a primeira de várias surpresas desagradáveis. A Funai encaminhou ofício ao órgão ambiental do Pará, solicitando a suspensão da AUTEF da fazenda, que estava servindo como base para a realização de toda a exploração madeireira na reserva.

Essa decisão foi publicada por autoridades locais no início de fevereiro de 2017, suspendendo instantaneamente a exploração madeireira na área.

A suspensão do AUTEF da fazenda Morro Alto aconteceu em fevereiro de 2017. Fonte: SEMAS/PA

A suspensão do AUTEF da fazenda Morro Alto aconteceu em fevereiro de 2017. Fonte: SEMAS/PA

Nunca saberemos o que mais poderia ser comercializado entre a Indusparquet e essas duas serrarias caso as autoridades ambientais não tivessem revogado a licença de exploração da fazenda Morro Alto.

Não há indicação alguma de que a Indusparquet tenha comprado madeira da fazenda Morro Alto ou de outras fontes por meio destas serrarias desde 2017. No entanto, isso não garante que madeira que segue sendo extraída ilegalmente no território indígena não faça parte de centenas de produtos que a companhia ainda compra do Pará.

No mesmo mês em que a Indusparquet comprava madeira de uma fazenda localizada dentro da reserva, a Funai encaminhou ofício solicitando a suspensão da AUTEF da propriedade

Um olhar mais detalhado sobre a MadBrasil, a serraria que abastecia a Indusparquet com a maior parte da madeira da reserva, revela que ela foi multada em R$ 673 mil pelo Ibama por fornecer informações falsas ao sistema de rastreamento de madeira do órgão ambiental sobre centenas de metros cúbicos de madeira. Duas dessas multas foram emitidas em abril e maio de 2017, poucos meses após a empresa vender madeira para a Indusparquet. Não está claro se as multas se referem a essas remessas.

As duas serrarias foram novamente multadas em 2020 no valor de R$1.724.836 (US$337.198) por não terem as licenças corretas para a madeira que processaram e por inserirem informações falsas sobre a verdadeira origem da madeira nos bancos de dados oficiais.

Nem as serrarias MadBrasil e Canoer nem os proprietários da Fazenda Morro Alto, Evandro Carlos de Oliveira e Wilson Paulo da Mota, responderam ao nosso contato para comentar estas alegações.

Os dois proprietários da Morro Alto foram multados em 2,76 milhões de dólares por diversas irregularidades, incluindo a destruição de quase 1.000 hectares de floresta dentro da reserva indígena

Infrações cometidas por Wilson Paula da Mota in 2021. Fonte: Ibama

Infrações cometidas por Wilson Paula da Mota in 2021. Fonte: Ibama

Alguns anos depois, em 2021, após um pico no desmatamento e o aumento da pressão de grupos ambientais e indígenas em relação a repetidas invasões105, os dois proprietários de fazendas foram penalizados por várias violações, incluindo a destruição de quase 1.000 hectares de floresta nativa dentro da reserva indígena, por destruir florestas não cobertas pela licença de exploração, inclusive dentro da própria fazenda Morro Alto, e por violar as restrições de acesso para uma área onde os povos indígenas isolados estão presentes. Uma área de 388,98 hectares dentro de Morro Alto foi colocada sob embargo. As multas emitidas contra os dois proprietários por essas violações totalizam 2,76 milhões de dólares.106

Contactada, a Indusparquet não negou nossas descobertas de irregularidades sobre os fornecedores do Pará

Contactada, a Indusparquet não fez qualquer comentário sobre nossas descobertas de irregularidades trazidas nesse capítulo ou sobre as multas aplicadas a seus fornecedores Canoer e MadBrasil. Em relação a seus fornecedores, a empresa afirmou apenas que possui políticas rígidas de seleção de fornecedores e coleta de documentos, e que está dedicada a aprimorar os mecanismos de avaliação de fornecedores. A empresa ainda afirmou que estão implementando um departamento de conformidade para gerenciar e mapear riscos e estava usando a ajuda de vários parceiros para fornecer avaliações de risco e melhorar a transparência.

TI Ituna Itatá,
dezembro de 2016

TI Ituna Itatá,
dezembro de 2020

Ituna Itatá e as ameaças contínuas

Enquanto as restrições de acesso à Ituna Itatá ainda estão em vigor, um relatório recente, publicado em janeiro de 2022 pela COIAB, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, e pelo OPI, o Observatório de Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados, revelou que colossais 22.000 hectares de florestas dentro da TI Ituna Itatá foram devastados desde 2011 – 15 por cento de sua área.107 Uma análise de imagens de satélite feitas pela Earthsight revela que o desmatamento continuou dentro da fazenda Morro Alto de onde a Indusparquet obteve sua madeira, com mais de 700 hectares perdidos desde 2017.

Isso significa que milhares de metros cúbicos teriam sido ilegalmente extraídos, violando diretamente a decisão de 2011 da Funai, e possivelmente vendidos a mercados tanto domésticos como internacionais.

Os recordes nos níveis de incêndios florestais podem também estar ligados ao crescente número de invasores na região.108 Análises de satélite por organizações indígenas também detectaram uma estrada ilegal ao sul do território, em uma região em que se estima que povos isolados estejam instalados.109

Desmatamento na TI Ituna Itatá. Foto: Hugo Loss/Ibama

Desmatamento na TI Ituna Itatá. Foto: Hugo Loss/Ibama

Calcula-se que 289 km de estradas tenham sido abertas dentro da reserva. Como no caso das propriedades capturadas por Evandro e Wilson, mais de 200 outros colonos estão usando o Cadastro Ambiental Rural – CAR, um registro compulsório mas autodeclarado de propriedades rurais, para reivindicar seus direitos sobre a terra em Ituna Itatá. Como resultado, estima-se que 94 por cento da reserva indígena já tenha sido agora reivindicada como propriedade privada.110

Cerqueira de Oliveira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), uma das maiores organizações de direitos indígenas no Brasil, contou à Earthsight no início do ano sobre o que o atual status da terra indígena significa para a legalidade dos títulos de terra na área. "A Constituição é clara. Assim que a terra for reconhecida como terra indígena tradicional com base em estudo da Funai, todos os títulos (privados) sobre ela serão considerados nulos."

O Greenpeace disse em 2021 que se os grileiros fossem autorizados a permanecer em Ituna Itatá, isso abriria um precedente muito perigoso, que contribuiria para 'o extermínio de mais de 100 grupos que vivem em isolamento em outras terras indígenas e sob a mesma condição no Brasil."111

As invasões a Ituna Itatá são estimuladas pela agenda anti-indígena promovida pelo governo federal e seus apoiadores. O senador Zequinha Marinho é um desses políticos representantes do estado do Pará que não apenas é aliado de Bolsonaro, mas também tem fortes conexões com os madeireiros e garimpeiros que vêm fazendo lobby pela revogação da proibição de acesso de pessoas de fora à terra. (Marinho é o mesmo político que foi pressionado por membros da indústria madeireira para ajuda-los auxílio após a maior apreensão de madeira da Amazônia, a Operação Handroanthus, veja 'Amigos Influentes').

Segundo relatório apresentado pela OPI, foi ideia do senador reduzir pela metade o território Ituna Itatá.112 Mais tarde, ele sugeriu a ministros que uma expedição fosse organizada para provar que não havia grupos isolados na região. A expedição seguiu em frente em 2020, em meio a duras críticas devido aos riscos que representava aos povos indígenas, já que o país foi severamente afetado pela Covid na época.113 

Senador Zequinha Marinho (direita) com Presidente Bolsonaro e outros políticos. Fonte: Marco Feliciano / Instagram

Senador Zequinha Marinho (direita) com Presidente Bolsonaro e outros políticos. Fonte: Marco Feliciano / Instagram

O grupo de especialistas passou três semanas na região, mas o plano de Marinho acabou indo por água abaixo. O grupo identificou evidências que confirmam a presença de povos indígenas isolados na área visitada.114 Apesar de sugerirem a necessidade de uma análise mais aprofundada e a organização de uma nova expedição, o assunto foi declarado encerrado pelo governo, que não considerou as provas coletadas na expedição.

Como não houve contato visual direto com nenhum desses povos indígenas, o presidente da Funai, Marcelo Xavier115, determinou em janeiro de 2022 que existiam motivos suficientes para revogar a interdição à entrada de não-indígenas no território. Dezenas de ONGs e especialistas conseguiram mobilizar o Ministério Público do Pará em protesto, que acabou pressionando o governo federal a renovar a restrição no mês seguinte. Atualmente, segundo decisão recente da Funai, a restrição é válida por mais três anos. No entanto, como visto anteriormente, mesmo a renovação da restrição de acesso não impediu a continuidade do desmatamento dentro da reserva. Reportagens de junho de 2022 mostram que o problema continua.116

Pote descoberto na TI Ituna Itatá em agosto de 2021, o que indicaria a presença de povos isolados. Fonte: Funai / Survival International

Pote descoberto na TI Ituna Itatá em agosto de 2021, o que indicaria a presença de povos isolados. Fonte: Funai / Survival International

Por agora, aqueles que lucram da exploração de Ituna Itatá – incluindo-se as propriedades de Evandro e Wilson – estão violando a Constituição Federal e deveriam ser responsabilizados por crimes ambientais. Aqueles que já lucraram da venda de madeira retirada da região, como a Indusparquet, são também cúmplices do problema. Até que o status de área protegida da reserva seja formalizado, não há como parar os impactos da grilagem de terra. Quilômetros de estradas serão abertas, e serrarias serão instaladas no meio da floresta.

O Brasil abriga o maior número de povos isolados em todo o mundo117, no entanto, a luta por sua proteção nunca foi tão urgente. Além do crescimento de atos de violência contra essas comunidades e o clima de impunidade entre os seus agressores, uma série de projetos de lei118 formulados pelo governo Bolsonaro e apoiadores tem o objetivo de promover o aumento da exploração de terras indígenas.

Os povos isolados em Ituna Itatá foram capazes de sobreviver até o momento, mas não haverá lugar para eles se o território de Ituna Itatá deixar de existir. O fim da floresta representará o fim da dessas comunidades.

Quando as árvores da floresta viram pisos de madeira

Caso exemplar ou exceção à regra?

Estava prestes a ser um dia histórico para os procuradores do Departamento de Justiça dos EUA e da Procuradoria dos EUA em Norfolk, Virgínia. Todos os argumentos ouvidos, uma sentença no caso 'Lumber Liquidators' estava prestes a ser proferida pelo juiz distrital a qualquer momento. A empresa, uma das maiores redes de lojas do país, já havia se declarado culpada de importar “conscientemente” madeira cortada ilegalmente no extremo oriente russo e de fazer declarações falsas sobre a origem de suas compras de madeira nas declarações de importação. A empresa estava prestes a ouvir as consequências de suas ações. Quando a sentença veio em fevereiro de 2016, foi enfática – a empresa foi condenada a pagar mais de US$ 13 milhões119 (incluindo US$ 7,8 milhões em multas criminais) e forçada a implementar um plano detalhado de conformidade para garantir que não infringisse o 'Lacey Act' novamente.

Em outubro de 2015, a Lumber Liquidators se declarou culpada no tribunal federal de cinco acusações relacionadas ao corte ilegal de madeira. Fonte: Environmental Investigation Agency

Em outubro de 2015, a Lumber Liquidators se declarou culpada no tribunal federal de cinco acusações relacionadas ao corte ilegal de madeira. Fonte: Environmental Investigation Agency

A primeira lei a proibir o comércio de produtos de madeira produzidos ilegalmente no exterior, uma emenda de 2008 à centenária “Lacey Act” proíbe as empresas americanas de importar madeira em violação às leis estrangeiras. As penalidades variam de acordo com o quanto a empresa sabia sobre o crime. Em caso de descumprimento de suas disposições, as empresas devem demonstrar que exerceram “o devido cuidado” em suas compras, para evitar as piores penalidades. A legislação foi aprovada no Congresso por uma coalizão bipartidária em resposta a vários estudos de caso expondo a cumplicidade do consumidor dos EUA na destruição das florestas do mundo. A sentença da Lumber Liquidators em fevereiro de 2016 tornou-se uma multa histórica para a violação do Lacey Act. O caso de madeira ilegal, juntamente com outro escândalo relacionado à descoberta de níveis inseguros de formaldeído em seus produtos, levou as ações da empresa a despencarem em 90 por cento. 

Quando a sentença veio, foi enfática

Dan Ashe, diretor do Serviço de Pesca e Vida Selvagem dos Estados Unidos, uma das agências federais responsáveis pela aplicação da lei, disse após o caso da Lumber Liquidators que, ao adquirir madeira de florestas vulneráveis em todo o mundo, ‘consciente e ilegalmente’, a empresa havia tornado os consumidores americanos ‘involuntariamente cúmplices’ na ‘destruição contínua de algumas das últimas florestas intactas do mundo’. 

Loja da LL Flooring no estado da Virginia, EUA. Foto: Earthsight

Loja da LL Flooring no estado da Virginia, EUA. Foto: Earthsight

A emenda histórica à Lei Lacey sobre madeira ilegal deveria ter acabado com essa cumplicidade na destruição de florestas e a multidão de abusos ambientais e de direitos humanos associados no exterior. 

Nos 14 anos desde que a proibição de madeira ilegal entrou em vigor nos EUA, houve uma pequena quantidade de casos movidos por violações, dos quais o caso da Lumber Liquidators foi de longe o maior. Cada caso levou anos para ser construído. Ao perseguir apenas um pequeno número de casos, mas garantindo que eles sejam grandes e de importância, as autoridades americanas esperam obter um efeito dissuasor, levando a uma melhor conformidade com Lacey Act em toda a indústria de produtos de madeira dos Estados Unidos. 

O Lacey Act foi criado para acabar com a cumplicidade americana na destruição de florestas. Mas a lei falhou

As punições, segundo a teoria, não mudam apenas as práticas das empresas culpadas, mas assustam os concorrentes que vendem produtos semelhantes ou compram outros produtos de madeira de regiões do mundo com risco de ilegalidade. 

Mas esta abordagem falhou de forma notável. E em nenhum lugar há um exemplo mais gritante do que o caso do Indusparquet e dos pisos de madeira importados do Brasil. 

A crescente importância dos EUA e os riscos no mercado de madeira do Brasil

O que levou os EUA a proibirem a madeira de origem ilegal foi uma série de escândalos relacionados à extração ilegal de madeira em todo o mundo e à cumplicidade de consumidores ocidentais. Todos esses escândalos estavam relacionados a madeiras de lei de florestas tropicais. Alguns dos escândalos mais importantes estão relacionados ao Brasil, que abriga a maior floresta desse tipo do mundo.120 Evidências crescentes mostraram ilegalidade desenfreada no setor madeireiro do país. Quando a proibição foi aprovada em 2008, um dos primeiros lugares que naturalmente se poderia esperar ver um efeito era o Brasil. Mas não foi o que aconteceu. 

No geral, desde que as emendas do Lacey Act entraram em vigor em 2008, as exportações de madeira do Brasil para os EUA mais que dobraram (veja o gráfico). Em 2021, o Brasil estabeleceu um novo recorde histórico para o valor de suas exportações de madeira e produtos de madeira para o exterior, de quase US$ 14 bilhões. O grande salto nas exportações em relação ao ano anterior deveu-se quase inteiramente ao crescimento em dois grandes mercados: os EUA e a União Europeia/Reino Unido. 

No ano passado, os EUA ultrapassaram a China e se tornaram o maior consumidor mundial de madeira brasileira

Nem tudo isso é madeira tropical: na verdade, a maioria são produtos “não tropicais”, como madeira de pinho e eucalipto e compensados, cultivados em plantações de monocultura. Embora altamente controversa em outros aspectos, essa madeira tem baixo risco de ter sido obtida ilegalmente. No entanto, o comércio de madeira tropical do Brasil para os Estados Unidos vem crescendo com a mesma rapidez, se não ainda mais rápido. Em 2009, um ano após a entrada em vigor das emendas do Lacey Act, os EUA importaram 22.481 metros cúbicos de madeira tropical do Brasil. Em 2019, as importações aumentaram 160 por cento, atingindo um recorde de 58.345 metros cúbicos. Eles permaneceram em um nível igualmente alto desde então, apesar do impacto da pandemia do COVID-19. 

No ano passado, os EUA ultrapassaram a China e se tornaram o maior consumidor mundial de madeira brasileira. Acumulou importações de madeira, celulose, papel e móveis de madeira da Amazônia no valor recorde de US$ 3,8 bilhões em 2021, um aumento maciço de 36 por cento em relação ao ano anterior. Vinte e sete por cento das exportações de madeira e produtos de madeira do Brasil foram destinadas aos EUA naquele ano; outros vinte por cento foram enviados para a União Europeia/Reino Unido. 

Esse crescimento rápido continuou em 2022. Exportações brasileiras de produtos à base de madeira (excluindo-se papel e celulose) em junho de 2022 totalizaram US$ 483,5 milhões, um aumento de 22 por cento em relação ao mesmo mês do ano anterior. As categorias de maior risco estavam crescendo rapidamente. As exportações de madeira de lei no mês cresceram 91 por cento, passando de US$14,1 milhões para US$26,9 milhões em comparação com o mesmo período do ano anterior.

Essa contradição não pode ser explicada pelo fato de a extração ilegal de madeira deixar de ser um problema no Brasil. 

Muito pelo contrário. O ex-superintendente da PF no Amazonas, que supervisionou a maior apreensão ilegal de madeira da história da Amazônia e liderou outras grandes operações de combate à fraude na exportação, estima que sejam ilegais 90 por cento da madeira que sai dos nove estados que abrigam a chamada ‘Amazônia Legal’.121

Estudos revelam que muitas espécies brasileiras de madeira em alta demanda nos EUA são extraídas ilegalmente

Os cientistas apontaram para um aumento na "falsa extração legal" na Amazônia nos últimos anos, com a existência generalizada de fraudes nos sistemas de contabilidade de madeira, dando uma aparência de legalidade à madeira ilegal. Outras análises mostram que muitas das espécies mais procuradas nos Estados Unidos também correm grande risco de serem exploradas ilegalmente. Tais achados apontam para a necessidade de adotar uma abordagem altamente cautelosa para adquirir madeira do Brasil. 

Há uma outra explicação possível para como as crescentes importações de madeira de um país que sofre com a exploração madeireira ilegal desenfreada podem ser possíveis se a Lei Lacey estiver funcionando. Talvez os compradores dos EUA, em vez de evitar completamente a madeira tropical brasileira, tenham se tornado muito hábeis em separar o joio do trigo? 

Entra em cena o maior exportador de pisos do Brasil

A Indusparquet é um dos maiores exportadores de madeira tropical de alto risco para os EUA. A madeira da empresa está por todo o país. Escolha uma cidade no mapa dos EUA e digite o nome na função "localizador de lojas" da Indusparquet USA, e as chances são de que uma loja que tenha em estoque produtos de madeira tropical fabricados pela maior empresa de pisos do Brasil esteja a uma curta distância de carro. 

Os EUA são de longe o mercado mais importante para a gigante brasileira – respondendo por 90 por cento das exportações de madeira da Indusparquet. A empresa afirma ter impulsionado praticamente sozinha um enorme aumento na popularidade entre os consumidores dos EUA para pisos de madeira tropical brasileira.122 A Indusparquet se vangloria de que seu piso foi usado em vários locais de prestígio, como o Mirage Hotel em Las Vegas e a casa da atriz Jennifer Aniston (e, bem mais longe, até o Taj Mahal). Mas isso desmente o verdadeiro segredo de seu sucesso: como, com suas ofertas de barganhas, a empresa tornou o que antes era um produto seleto e caro, verdadeiramente algo que podia ser consumido por todos.

A madeira da Indusparquet está por todo os EUA

As apreensões de madeira em 2018 pelas autoridades durante a Operação Pátio deveriam ter sido um sinal de alerta para possíveis novos clientes da Indusparquet nos Estados Unidos. Os outros escândalos nos quais a empresa se envolveu também não eram um grande segredo para aqueles que se preocupavam em buscar informações, e também deveriam ter desencadeado desconfianças, e talvez deslocado os compradores dos EUA para fornecedores alternativos. 

Pelo contrário, os escândalos em torno da Indusparquet se multiplicaram, e a importação de madeira da companhia pelos Estados Unidos só aumentou. Análises anteriores realizadas pela Earthsight mostram que apesar do envolvimento da Indusparquet na Operação Pátio, por exemplo, exportações de madeira depois disso cresceram 15 por cento.

Entre janeiro de 2017 e agosto de 2022, a Indusparquet exportou um total de 27.590 toneladas para os Estados Unidos. O peso total de toda aquela madeira é maior que o da Estátua da Liberdade, incluindo sua base de concreto.123 São pisos com um valor de varejo de aproximadamente US$ 250 milhões: um quarto de bilhão de dólares.124 Vinte e três por cento (em termos de peso) desse total foram pisos “projetados” de várias camadas (com uma fina camada superior de madeira tropical) produzidos pela marca Indusparquet Masterpiso no estado do Paraná. O restante foi piso de madeira maciça tropical feito na sede da empresa em Tietê, São Paulo. Este é o mesmo local que foi alvo da Operação Pátio em 2018, que levou a empresa a ser processada por suborno, em um caso que ainda está em andamento [Veja: Nosso homem em São Paulo]. 

A Indusparquet se vangloria de que seu piso foi usado no Taj Mahal e no Vaticano

Os produtos ofertados no mercado americano incluem pisos feitos a partir de diversas madeiras de lei exploradas em excesso na Amazônia como cumaru, tauari, jatobá, sucupira, ipê, e angelim.

Quem são as empresas americanas que, apesar dos riscos legais, continuam a comprar os materiais dessa firma com reputação duvidável?

A Indusparquet comercializou cerca de US$ 250 milhões em pisos de madeira tropical nos EUA

Mais da metade das exportações da Indusparquet para os Estados Unidos é enviada para sua própria subsidiária no país, com base na Flórida, a BRW Floors. Essa subsidiária nos Estados Unidos foi co-fundada pelos donos da Indusparquet José Antonio Baggio e Luiz Francisco Uliana, e é administrada pela filha de Baggio. A BRW não vende o piso diretamente a consumidores, mas distribui a milhares de revendedores de pisos pelos Estados Unidos.

No entanto, alguns consumidores são tão grandes que eles escolhem importar diretamente.

O cliente Americano

No primeiro dos quatro escândalos envolvendo a Indusparquet revelados neste relatório, “O Agente no Paraná”, escutas telefônicas descobriram evidências envolvendo um dos proprietários da empresa e um funcionário público em um suposto esquema de corrupção criado para garantir o fornecimento de bracatinga, uma espécie de madeira endêmica da Mata Atlântica. As transcrições do processo judicial revelaram que a caçada para obter essa madeira havia sido desencadeada por um “cliente americano” não identificado da Indusparquet, que estava requisitando volumes maiores de pisos da espécie.

"Tinha feito alguns negócios com a bracatinga (...) Por solicitação de um cliente nos Estados Unidos que gostou da madeira, nós fomos atrás comprar mais bracatinga", disse o coproprietário da Indusparquet José Antonio Baggio em uma audiência judicial sobre o caso no estado do Paraná, em novembro de 2021. 

Mas a pergunta que nós fazíamos – quem era o cliente misterioso nos EUA cuja demanda por bracatinga causou todo o estardalhaço em primeiro lugar? 

A investigação da Earthsight sugere fortemente que o cliente ao qual Baggio estava se referindo não é outro senão a maior cadeia de varejo americana especializada em pisos

Outras pesquisas da Earthsight sugerem fortemente que o cliente ao qual Baggio estava se referindo não é outro senão a maior cadeia de varejo americana especializada em pisos, Floor & Decor. 

Com sede na Geórgia e quase 90 lojas nos EUA, a Floor & Decor totalizou vendas no valor de US$ 3,4 bilhões em 2021, um aumento de 41,5 por cento em relação ao ano anterior.125 Os registros de embarque obtidos e analisados pela Earthsight revelam que a empresa vende pisos tropicais brasileiros fabricados pela Indusparquet desde 2015, e que, durante esse período – inclusive na época em que ocorreram todos os escândalos da Indusparquet – era o maior cliente da empresa nos EUA.

Floor & Decor também é uma das duas empresas nos Estados Unidos que a Earthsight encontrou oferecendo pisos feitos de bracatinga (cujo nome científico é Mimosa scabrella) para vendas online. Eles têm em estoque um produto de piso de madeira engenheirado feito de ‘Bracatinga Merida sob a linha de pisos intitulada ‘Quest Exotic Hardwoods’.126

Pisos de bracatinga à venda no site da Floor & Decor. Fonte: Floor & Decor

Pisos de bracatinga à venda no site da Floor & Decor. Fonte: Floor & Decor

Assim que descobrimos que a Floor & Decor também tinha uma gama de produtos de bracatinga, analisamos mais de perto os registros de embarque e encontramos mais pistas reveladoras. 

Identificamos ao menos quatro carregamentos de pisos de madeira de bracatinga com peso de 96 toneladas enviados pela subsidiária da Indusparquet no Paraná (Compensados Império ou Masterpiso), para os Estados Unidos, recebidos por duas empresas de carga norte-americanos. Pelas revelações feitas anteriormente, a Earthsight sabia que essas mesmas empresas de frete haviam sido usadas como intermediárias pela Floor & Decor para suas importações brasileiras da Indusparquet. 

E agora, o fator chave. Embora o destinatário final não seja nomeado, a linha de pisos da marca ‘Bracatinga merida’, vendida exclusivamente pela Floor & Decor, aparece na descrição do conteúdo das remessas. 

A Earthsight conseguiu adquirir uma caixa de pisos fabricado pela Indusparquet em 2019 na loja Floor & Decor

O caso que aconteceu no Paraná, que a Floor & Decor provavelmente desencadeou involuntariamente, não é o único escândalo que a empresa de alguma forma conseguiu ignorar. 

Em novembro de 2018, a Earthsight expôs como a Floor & Decor continuou comprando madeira da Indusparquet apesar da ampla publicidade em torno do envolvimento da empresa na enorme apreensão de madeira apelidada de 'Operação Pátio' [Ver Nosso homem em São Paulo, acima].

Embora a empresa continue a anunciar o produto ‘Bracatinga merida’ à venda em seu site, os registros de remessa sugerem que em novembro de 2019 a Floor & Decor finalmente parou de importar da Indusparquet. 

Caixa 'Bracatinga Merida' produzida pela Indusparquet comprada pela Earthsight em uma loja da Floor & Decor no estado da Virginia, em setembro de 2022. Foto: Earthsight

Caixa 'Bracatinga Merida' produzida pela Indusparquet comprada pela Earthsight em uma loja da Floor & Decor no estado da Virginia, em setembro de 2022. Foto: Earthsight

Questionada especificamente pela Earthsight sobre se a empresa era, ou poderia ser, o cliente misterioso americano referido no processo judicial do Paraná, a Floor & Decor afirmou que estava comprometida com práticas de fornecimento responsável e que não havia comprado nenhum piso de fabricação brasileira da Indusparquet e suas afiliadas desde 2019. A empresa americana tambem nos contou que adquiriu o produto 'Bracatinga merida' pela última vez em 2019 e que esta linha foi descontinuada desde então. Afirmou que, embora o produto já não possa ser encontrado em seu site, há uma página residual do produto que ainda pode ser encontrada em pesquisas na Internet, algo que eles estão tentando resolver. Não podemos afirmar que a Floor & Décor estava ciente do suposto esquema de corrupção descrito neste relatório para adquirir madeira bracatinga. 

Embora a empresa possa não ter comprado nenhum piso novo da Indusparquet ultimamente, os produtos da empresa brasileira propensa a escândalos continuam sendo vendidos por ela. A Earthsight conseguiu adquirir uma caixa de piso ‘Bracatinga merida’, fabricada em 2019, na loja Floor & Decor’s no norte da Virgínia, em setembro de 2022. 

Seria possível pensar que a perda de seu maior cliente norte-americano teria sido um grande golpe para a Indusparquet, e talvez até encorajá-la a pensar em consertar seus caminhos. Mas, como descobrimos, a companhia já havia contratado um cliente substituto de estatura semelhante. Um cliente surpreendente. 

Reincidente

Em abril de 2018, mesmo mês em que as ações judiciais foram movidas contra a Indusparquet e Baggio pelo escândalo de corrupção no Paraná, e apenas um mês antes de agentes do Ibama e da PF invadirem a sede da empresa em São Paulo na Operação Pátio, os primeiros embarques da Indusparquet para um novo cliente de prestígio começaram a chegar aos portos norte-americanos. 

Apesar de estar em período probatório depois de ser considerado culpado de comprar conscientemente madeira roubada, tendo suas compras supostamente sob a cuidadosa vigilância de auditores independentes e do Departamento de Justiça dos EUA, esse novo cliente era ninguém menos do que o arquirrival da Floor & Decor, Lumber Liquidators.

A Lumber Liquidators (agora chamada LL Flooring) promoteu tomar medidas adicionais para limpar sua cadeia de suprimentos

Em seu plano de conformidade, a Lumber Liquidators concordou com a justiça que, juntamente com seus US$ 13 milhões em multas e outras penalidades, tomaria medidas adicionais para limpar sua cadeia de suprimentos. Seu desempenho em relação a esse plano acordado durante o período probatório de quatro anos deveria ser avaliado periodicamente por um auditor independente, com os resultados revisados ​​pelo Departamento de Justiça dos EUA.

O plano exigia que a empresa montasse uma equipe especializada em conformidade com a lei Lacey Act, e conduzisse avaliações de risco detalhadas de todos os seus fornecedores de madeira, com prioridade para os da Ásia e da América do Sul: um reconhecimento óbvio dos redatores de que essas são regiões particularmente de alto risco. Os fatores listados no plano como sinalizadores de um fornecedor de “alto risco” incluíram incidentes relatados de extração ilegal ou antiética e corrupção no país de produção ou relacionados às espécies em questão. Eles também incluíram o nível de integração vertical entre floresta e fornecedor e “preocupações de legalidade observadas pelo governo”.127 Se considerado de alto risco, um fornecedor estaria sujeito a verificações ainda mais rigorosas, incluindo inspeções no local pelo menos a cada trimestre. 

Considerando o que se sabia na época sobre o Brasil em geral, sobre a Indusparquet em particular e sobre as espécies tropicais que fornecia, é difícil ver como a empresa poderia ter sido classificada como outra coisa que não de alto risco. No entanto, a pesquisa da Earthsight mostra que, se fosse esse o caso, as verificações supostamente rigorosas exigidas de alguma forma falharam em capturar os óbvios sinais de alerta. Também é difícil ver como as auditorias independentes não conseguiram identificar um problema. Não ajuda que os relatórios tenham em grande parte permanecido secretos. Apenas um dos quatro relatórios de auditoria exigidos pelo tribunal – preparados pelo escritório de advocacia Grant Thornton e cobrindo o período de janeiro de 2017 a maio de 2018 – está disponível ao público, e mesmo esse foi fortemente editado para excluir trechos originais. O que resta, que não faz uma única menção ao Brasil, e muito menos à Indusparquet, oferece poucas pistas. 

A Lumber Liquidators começou a comprar pisos engenheirados da Indusparquet em abril de 2018, apesar dos muitos sinais de alerta, e continuou após a apreensão de maio de 2018, apesar das notícias sobre escândalos de madeira ilegal envolvendo a empresa serem bastantes divulgadas128, inclusive pela Earthsight. Em 2019, suas compras com a empresa propensa a escândalos mais do que dobraram em relação ao ano anterior. Entre maio de 2018 e o final da liberdade condicional da Lumber Liquidators em 6 de outubro de 2020, a empresa importou ao menos 6,3 milhões de metros quadrados desse piso, com um valor de varejo aproximado de US$ 6 milhões.

A Lumber Liquidators importou o equivalente a US$ 6 milhões em pisos da Indusparquet entre maio de 2018 e o final do seu período probatório

Até mesmo a nossa publicação Untamed Timber, em janeiro de 2021, que mostrou como a Indusparquet evadiu o pagamento de diversas multas por extração ilegal de madeira em circunstâncias duvidosas, não impediu a empresa de continuar sendo um cliente fiel da empresa brasileira. Suas compras de pisos engenheirados da Compensados Império, empresa do mesmo grupo da Indusparquet no sul do Brasil, continuaram até outubro de 2021, incluindo produtos feitos com camadas superficiais de tauari e jatobá e vendidos sob o produto de linha chamados ‘Forest Hill’, ‘Esperanza’, ‘Bandera’ e ‘Padre’. 

A Earthsight contactou a Lumber Liquidators (agora chamada LL Flooring) oferencendo espaço para que empresa pudesse se explicar. Eles não responderam. 

Expansão da influência nos EUA

Apesar da publicidade em torno da Operação Pátio, e dos detalhes documentados neste relatório em relação aos vários outros processos judiciais graves contra a empresa estarem publicamente disponíveis para qualquer advogado qualificado por meio de um banco de dados brasileiro aberto a pesquisas, em 2021 as vendas da Indusparquet nos EUA atingiram um recorde. A empresa embarcou 6.234 toneladas de pisos para os portos dos EUA – um aumento de 23 por cento em relação a 2020 e de 7 por cento em 2019 (pré-COVID). Trata-se de pisos com um valor de varejo de aproximadamente US$ 50 milhões.129 É madeira tropical preciosa suficiente para revestir o piso do Pentágono cinco vezes. 

Se a lei Lacey Act estivesse funcionando conforme o esperado, os importadores americanos e revendedores deveriam estar bastante cientes do risco inerente a esses produtos e deveriam tê-los evitado a todo custo. Mas parece que aconteceu exatamente o oposto.

É madeira tropical suficiente para revestir o piso do Pentágono cinco vezes

A Lumber Liquidators não foi o único grande novo cliente norte-americano que a Indusparquet conseguiu conquistar apesar do crescente escândalo em torno da empresa. Em 2019, a companhia começou a fornecer grandes volumes para a Bison Innovative Products, uma empresa sediada no Colorado especializada na venda de tacos de deck para áreas externas. Eles vendem esse material em uma variedade de espécies tropicais da América do Sul, como o altamente ameaçado ipê, uumaru, massaranduba e garapa. 

A empresa se gaba de que seus produtos foram usados para construir instalações governamentais, bem como conhecidas bibliotecas, hotéis, hospitais infantis e parques. Seus clientes incluem a Universidade da Califórnia, a cadeia de hotéis Hyatt Regency, o AT&T Performing Arts Center em Dallas e o Museu de Arte Moderna de Nova York, para citar apenas alguns. 

O nome de Bison desapareceu dos registros de remessas em março de 2021, logo após a Earthsight publicar seu relatório anterior sobre a Indusparquet, Untamed Timber. Naquela época, a empresa havia registrado 3.571 toneladas de compras. No entanto, um volume mensal quase igual de embarques de Indusparquet continuou sendo importado para os EUA até dezembro para um comprador anônimo, com as mesmas descrições de mercadoria, e embarcado pelo mesmo porto. A Bison não emitiu uma resposta substantiva a um pedido de comentário, dizendo apenas que revisaria as informações fornecidas. 

A Indusparquet também continuou a conquistar novos distribuidores para os produtos que importa para os EUA por conta própria. Em julho de 2019, a Indusparquet USA assinou um acordo com a empresa de pisos Fuzion, com sede em Dallas, para distribuir seus produtos em estados do sul como Texas, Oklahoma, Louisiana, Arkansas, Mississippi e oeste do Tennessee. Em 2021, ampliou seu contrato de distribuição com a Galleher, uma das maiores fabricantes/distribuidoras de pisos dos EUA. Apesar de contactadas, Fuzion e Galleher não responderam aos nossos pedidos de resposta.

Menards, uma das "três grandes" lojas americanas, é uma das clientes da Indusparquet

Naquele que parece ter sido o maior golpe de varejo da Indusparquet até hoje, a Earthsight encontrou evidências que indicam inclusive que a grande rede de reformas dos EUA, Menards, está estocando seus pisos. A empresa, que registrou US$ 10,7 bilhões em receita em 2020, é uma das "três grandes" lojas americanas ao lado de Lowes e Home Depot. 

A Earthsight descobriu que a única espécie tropical de piso de madeira maciça à venda na Menards é uma fornecido pela Indusparquet (e leva a marca da subsidiária americana da empresa, BRW Floors). É feito com o que chama de ”Brazilian Pecan”, o nome comercial comum nos EUA para a espécie de árvore guaiuvira (Patagonula americana) que, assim como a bracatinga, cresce na Mata Atlântica. Marcações em uma amostra deste produto comprada pela Earthsight em setembro de 2022 indicaram que o produto, no entanto, não foi feito no Brasil, mas no Paraguai, pais que também abriga essas florestas.130 O produto é oferecido por apenas US$ 22,84 por pé quadrado (medida muito usada nos EUA.) Entramos em contato com a Menards para comentar sobre os escândalos ligados ao seu fornecedor, mas não recebemos resposta. 

Foto da Brazilian Pecan produzida pela Indusparquet à venda no site da Menards. Fonte: Menards

Foto da Brazilian Pecan produzida pela Indusparquet à venda no site da Menards. Fonte: Menards

Consumidores europeus

Embora os EUA sejam de longe o mercado mais importante para a Indusparquet, eles não são o único. 

Do outro lado do Atlântico, a subsidiária da Indusparquet na França, CPF Parquet, mantém sua clientela europeia abastecida há 15 anos. Cerca de 4 por cento das exportações da Indusparquet destinam-se à Europa, sendo a maioria para esta subsidiária francesa. Seu showroom perto de Nice garante que necessidades individuais também sejam atendidas. A Earthsight também identificou outra subsidiária francesa da Indusparquet chamada Casabrasil Biotech Sanches, que vende madeiras exóticas diretamente para profissionais do setor e clientes privados.

Embora a Earthsight não tenha conseguido rastrear os produtos da Indusparquet para nenhum varejista importante na Europa, eles certamente foram usados em projetos de alto nível por lá. A empresa se orgulha de ter fornecido pisos tropicais para uso no Vaticano em Roma e nas lojas Dolce e Gabbana em Milão. 

As vendas da Indusparquet para a Europa permaneceram praticamente estáveis nos últimos anos, em torno de 20 toneladas ou um contêiner por mês, principalmente de decks externos. É difícil ver como isso pode ser compatível com – o Regulamento da União Europeia sobre a madeira (EUTR) –o equivalente da UE ao Lacey Act americano. Na UE, a regulação vai além, não apenas proibindo a importação de madeira roubada, mas também exigindo que as empresas garantam que o risco de obter tal madeira seja reduzido a um nível ‘insignificante’. 

Empresas europeias também estão conectadas à Indusparquet de outras formas. A gigante francesa de varejo de materiais de construção Leroy Merlin, por exemplo, que tem 464 lojas em todo o mundo, vende pisos Indusparquet em suas filiais no Brasil. A falha da Leroy Merlin em lidar com os riscos ambientais associados a essas vendas pode estar violando a lei do Dever de Vigilância de 2016 da França, que obriga grandes empresas francesas a tomarem medidas para evitar cumplicidade em danos ambientais e abusos de direitos humanos, inclusive no exterior. A Leroy Merlin não respondeu aos pedidos de comentários. 

Produtos de madeira ipê à venda na loja Leroy Merlin. Fonte: Leroy Merlin Brasil

Produtos de madeira ipê à venda na loja Leroy Merlin. Fonte: Leroy Merlin Brasil

Sinais de alerta por todos os lados

Se já é complicado de entender como a Lumber Liquidators foi capaz de comprar de uma empresa como a Indusparquet, apesar de ser umas das mais monitoradas nos EUA no setor madeireiro, é ainda mais difícil de entender quando considerados outros sinais de alerta que estavam prontamente disponíveis para a empresa e para as autoridades encarregadas de fiscalizá-la, bem como para outros clientes da Indusparquet nos EUA, incluindo Menards e Floor & Decor. 

Recentemente, o coproprietário da Indusparquet deu entrevistas sobre a importância da rastreabilidade dos suprimentos de madeira e da certificação da madeira, mas é difícil levar essas palavras a sério quando os padrões de fornecimento da empresa são examinados mais de perto. Registros brasileiros obtidos pela Earthsight, e acessíveis a qualquer empresa que esteja disposta a fazer sua própria pesquisa, mostram que nos últimos seis anos a Indusparquet recebeu madeira de 416 fornecedores diferentes, e esse número inclui apenas serrarias em quatro estados brasileiros para os quais conseguimos obter dados. 

Cada serraria provavelmente recebe toras de vários lugares diferentes, portanto, o número final de fontes florestais das quais a empresa está obtendo sua madeira é provavelmente imensamente maior. E estes são apenas os números oficiais – de um sistema que é conhecido por ser fortemente manipulado e sujeito a fraudes generalizadas. 

Nos últimos seis anos, a Indusparquet recebeu madeira de 416 fornecedores diferentes

Um olhar mais atento a apenas uma pequena fração dos subfornecedores da Indusparquet que este relatório cobre mostra que eles coletivamente arrecadaram 3,7 milhões de dólares em multas por falsificar informações em documentos oficiais sobre a origem ou volume de madeira, não ter as licenças certas para cortar ou armazenar madeira, além de uma série de outras violações. Esses fornecedores adquiriram madeira de áreas protegidas, ameaçaram reservas indígenas e foram acusados por promotores em casos envolvendo suspeitas de suborno e manipulação em larga escala dos bancos de dados que gerenciam os créditos de madeira. 

Depoimentos da equipe da Indusparquet colhidos no processo judicial do Paraná em 2021 destacam uma complexidade impressionante das cadeias de suprimentos da empresa no Brasil. Três funcionários separados alegaram atender mais de 30 ligações por dia de fornecedores de madeira em potencial. 

Existe um consenso geral entre os especialistas da cadeia de suprimentos de que os riscos ambientais, sociais e de governança (como o fornecimento de madeira ilegal) aumentam drasticamente à medida que a complexidade e a diversidade da cadeia de suprimentos aumentam, enquanto a capacidade de conduzir uma “due diligence” ou rastreabilidade relevante diminui. 

Esses fornecedores adquiriram madeira de áreas protegidas, ameaçaram reservas indígenas e foram acusados por promotores em casos envolvendo extração de madeira ilegal

Pode-se apenas supor que os auditores contratados pela Lumber Liquidators para avaliar o risco de suas compras da Indusparquet acharam que esse risco era aceitável porque a documentação fornecida pelo SISDOF do governo rastreou toda a madeira até o local da origem. 

Mas já é claro por muitos anos que esse sistema não é confiável. Os casos envolvendo alegações de fraude no sistema relacionados à Indusparquet são a ponta de um iceberg que remonta há muitos anos. 

Em entrevista à Earthsight e Mongabay, Renato Morgado da Transparency International Brazil relatou que corrupção “é um problema estrutural no setor madeireiro. Especialmente no setor da exploração de madeira nativa, onde a corrupção acaba sendo um fator que viabiliza a exploração ilegal de madeira”. 

Ele ainda acrescentou existir três práticas comumente usadas e que geram mais preocupação: a fraude no sistema de controle da base de dados de credito de madeira, o Sinaflor; corrupção envolvendo agentes públicos e privados (seja para fraudar autorizações de licenciamento, para fiscalização ou para mudança de normas); e lavagem de dinheiro. 

Já em 2008, descobriu-se que as madeireiras haviam invadido o banco de dados e ajustado os dados, permitindo a lavagem de 1,7 milhão de metros cúbicos de toras ilegais do estado do Pará.131 Este foi provavelmente o maior caso de madeira ilegal na história do planeta Terra. 

Há muito tempo se sabe que o sistema não é confiável

Em 2014 e novamente no ano seguinte, o Greenpeace publicou outras descobertas chocantes revelando fraudes sistemáticas nos sistemas brasileiros de rastreamento de madeira e de garantia de legalidade. Um dos muitos estudos de caso que eles expuseram se concentrou em uma única floresta licenciada no Pará, de onde supostamente vasta quantidade de madeira preciosa de ipê se originaria. As autoridades descobriram que essas alegações no SISDOF eram fraudulentas e que madeira ilegal com um valor final de exportação de mais de US$ 7 milhões provavelmente foi lavada como resultado. 

Outras evidências da contínua fraude desenfreada nesses sistemas vieram em 2018, quando outro relatório do Greenpeace sobre o Pará comprovou mais uma vez a “inadequação da documentação oficial como garantia da origem legal da Amazônia”. 

Devido a esses bem documentados problemas com o SISDOF, os auditores da Lumber Liquidators nunca deveriam ter confiado no sistema como prova de conformidade com as verificações de legalidade da madeira da empresa impostas pela justiça. O Departamento de Justiça dos EUA também não deveria tê-lo aceitado como prova de conformidade com essas verificações. Mas parece que foi exatamente o que eles fizeram. 

Consequências para a Amazônia

Incêndios na Amazônia. Fonte: ClimaInfo

Incêndios na Amazônia. Fonte: ClimaInfo

Compreendendo a ilegalidade

Este relatório contém lições importantes para entender os esforços para lidar com a destruição contínua das florestas do Brasil e os impactos devastadores que esta destruição está causando tanto nas pessoas como no planeta.

O mundo enfrenta uma emergência climática, e sabemos que o desmatamento tem um grande papel nisso. A Amazônia pode estar se aproximando de um ponto sem retorno, onde se torna uma fonte de emissões de carbono em vez de um sumidouro, que absorve CO2. Não há mais tempo para erros, por isso é mais essencial do que nunca que as lições sejam aprendidas.

As eleições estão prestes a acontecer no Brasil, o que pode anunciar uma nova administração e, com ela, uma nova esperança. Enquanto isso, o governo dos EUA anunciou uma série de novos compromissos para ajudar a combater o desmatamento no Brasil e está considerando uma nova legislação que visa abordar seu papel na condução desse desmatamento, proibindo a importação de commodities agrícolas produzidas em terras desmatadas ilegalmente.

Compreender a a real natureza dos ilegalidades que ocorrem nas florestas brasileiras é fundamental para se pensar em soluções para tais problemas

Mas o esforço e o compromisso renovados de um novo governo brasileiro e a ação ampliada dos EUA não darão em nada se não abordarem a real natureza dos problemas enfrentados pelas florestas brasileiras.

A ilegalidade é fundamental para isso. Noventa e cinco por cento do desmatamento relacionado ao agronegócio no Brasil foi considerado ilegal durante 2013-2019.132 Um estudo recente descobriu que pelo menos 55 por cento de toda a extração de madeira (que é seletiva e, portanto, não causa desmatamento direto) no estado do Pará, é ilegal, e que a área explorada ilegalmente está aumentando a uma taxa de 20 por cento por ano.133 Esses números provavelmente também refletem a situação em outras partes do país. E mesmo esses números chocantes só são capazes de avaliar algumas formas de ilegalidade e certamente subestimam a verdadeira extensão do problema. Ações políticas para conter a extração de madeira e desmatamento legais, além de ameaçar os meios de subsistência e o desenvolvimento econômico, também são inúteis em um ambiente sem lei, uma vez que não se pode esperar que sejam cumpridas

Há um mal-entendido persistente, no entanto, especialmente nos países consumidores, sobre o que "ilegal" significa quando usado para se referir ao que está acontecendo nos países com extensa cobertura florestal.

Desmatamento na Amazônia. Fonte: ClimaInfo

Desmatamento na Amazônia. Fonte: ClimaInfo

Supõe-se comumente que a maior parte da extração de madeira ou desmatamento 'ilegais' é de natureza clandestina, conduzida por criminosos totalmente fora dos canais normais, os bens contrabandeados para o mercado, assim como as drogas. A realidade não poderia ser mais diferente.

Quase todo desmatamento ilegal e extração ilegal de madeira que ocorre em todo o mundo acontece sob algum tipo de autoridade governamental, e quase todos os bens produzidos como resultado são comercializados abertamente e acompanhados de documentação oficial e verdadeira. O problema é que as permissões para cortar ou limpar são concedidas ilegalmente, de forma corrupta ou não, e suas condições são sistematicamente violadas. Os sistemas de rastreabilidade exigidos pelo governo, quando existentes, são falhos e abertos a abusos desenfreados. Em muitos casos, os que comandam o governo nem querem que as leis do país sejam seguidas. E de forma generalizada, as mercadorias são consideradas legais pelas autoridades competentes no momento em que são exportadas. Tudo fica misteriosamente 'legal'. Os 'intermediários' que liberam, emitem e assinam esses papéis estão por todos os lados, desde funcionários de baixo escalão até o presidente. Mas seus financiadores, o que oferecem comissão e propina, são sempre os mesmos: o agronegócio e as indústrias madeireiras.

Os 'intermediários' estão por todos os lados, desde funcionários de baixo escalão até o presidente. Mas seus financiadores, o que oferecem comissão e propina, são sempre os mesmos: o agronegócio e as indústrias madeireiras

Isso acontece devido a falhas mais amplas de governança, falhas como as ilustradas nesse relatório, envolvendo a Indusparquet.

Funcionários públicos individuais são corrompidos. Onde irregularidades são detectadas, decisões inexplicáveis dos juízes deixam os malfeitores livres, enquanto os funcionários honestos que trouxeram os casos têm seus esforços "recompensados" com rebaixamentos de posição. Políticos ligados às poderosas indústrias agrícolas e madeireiras minam ativamente a fiscalização, desmantelando agências relevantes, inserindo funcionários que operam como marionetes, já que não treinados para administrá-las, e até mesmo interferindo em casos individuais a pedido das indústrias que deveriam estar regulando. Sistemas e procedimentos deficientes, claramente abertos a abusos, são mantidos sem reforma.

Lições apreendidas

O papel da extração de madeira foi um pouco esquecido à medida que outros fatores de destruição das florestas, como a produção de gado para abate e a soja – e os incêndios planejados para deixar a terra limpa para seus negócios – assumiram posição de destaque.

Mas ele é extremamente importante. Embora não leve diretamente ao desmatamento, enfraquece a floresta, tornando-a mais suscetível ao fogo.134 Além disso, as estradas e trilhas construídas para acessar as árvores de alto valor fornecem uma porta de entrada para os pecuaristas e produtores de soja, permitindo que eles desmatem a floresta remanescente. Para cada árvore comercial removida, 27 outras árvores com mais de 10 cm de diâmetro são danificadas, 40 metros de estrada são criados e 600 metros quadrados de copa abertos.135 Essa extração de madeira é uma das razões pelas quais estudos recentes sugerem que grandes extensões da Amazônia brasileira estão agora emitindo mais carbono do que absorvem.136

Pilhas de madeira na Amazônia brasileira. Foto: Tarcisio Schnaider / Shutterstock

Pilhas de madeira na Amazônia brasileira. Foto: Tarcisio Schnaider / Shutterstock

Mas a extração de madeira e a indústria madeireira no Brasil são ainda mais importantes pelas lições que contêm sobre como combater o desmatamento para outras commodities. Os esforços para combater a ilegalidade no setor madeireiro no Brasil são muito mais antigos, assim como os esforços para enfrentar o papel dos países consumidores. Esses esforços falharam, assim como acontecerá com os esforços em outras 'commodities de risco florestal' se essas lições não forem aprendidas.

Tais ações devem começar no próprio Brasil. Foi demonstrado que um declínio dramático anterior no desmatamento no país ocorreu em grande parte por causa de ações para melhorar a governança. Essas ações devem ser redobradas. Personagens malfadados colocados em posições de poder na indústria devem ser removidos das cadeiras em que foram colocados pelo governo Bolsonaro. Outras ações tomadas por esse governo para desmantelar autoridades relevantes, incluindo o Ibama, devem ser revertidas com urgência. Mas vale lembrar que os problemas documentados neste relatório são anteriores a essa administração, e ações adicionais também são exigidas.

A extração de madeira e a indústria madeireira no Brasil são importantes pelas aprendermos lições sobre como combater o desmatamento para outras commodities

Uma dessas ações urgentes é resolver as falhas fundamentais nos sistemas brasileiros de licenciamento de exploração madeireira e rastreamento dos bens produzidos até o mercado. Essas falhas foram amplamente demonstradas em relatórios anteriores de grupos ambientalistas brasileiros e foram feitas recomendações específicas para corrigi-las. Esses mesmos grupos também pediram ações para resolver outra debilidade já conhecida há anos na governança florestal no país, que é garantir que as empresas condenadas por extração ilegal de madeira e desmatamento ilegal sejam realmente punidas. No passado, apenas 1 por cento de todas essas multas foram realmente pagas. No governo Bolsonaro, a moda tem sido simplesmente não multá-los.137

Esforços também são necessários para abordar a influência eleitoral do lobby da agricultura e da madeira no Brasil e seu impacto na política florestal. Apesar das rígidas leis de financiamento de campanha, persiste uma conexão entre os ciclos eleitorais e o desmatamento. Um estudo recente, por exemplo, mostrou um "aumento significativo" na perda de floresta detectada em 2.253 municípios da região da Mata Atlântica do Brasil durante anos de eleições federais e municipais.138

Presidente Jair Bolsonaro reduziu esforços no combate ao desmatamento ilegal. Foto: Marcelo Chello / Shutterstock

Presidente Jair Bolsonaro reduziu esforços no combate ao desmatamento ilegal. Foto: Marcelo Chello / Shutterstock

O ônus da prova

Os países desenvolvidos, como os EUA, devem incentivar e apoiar essas ações no Brasil. Mas eles também devem colocar sua própria casa em ordem.

O volume de madeira importada da Indusparquet prova, sem sombra de dúvida, que a pioneira proibição de madeira ilegal de 2008 está falhando em seu próprio território.

Esse é um caso que deveria ter sido fácil de ser evitado. Eram espécies tropicais obviamente de alto-risco, vindas de um país de alto-risco. Por anos, havia suficientes sinais de alerta sobre o fornecedor. A apreensão e as multas contra a Indusparquet foram amplamente divulgadas. Um dos importadores norte-americanos que comprou o piso da empresa brasileira era um infrator conhecido, alvo da maior multa com base no Lacey Act da história. As importações dessa empresa da Indusparquet ocorreram apesar das medidas probatórias que puseram todas as suas compras sob um nível inédito de monitoramento por auditores independentes e pelo Departamento da Justiça, algo que não é obrigatório pela própria lei e não é aplicável a nenhum outro importador. É razoável perguntar: se a lei de madeira ilegal dos EUA não consegue funcionar nessas circunstâncias, então quando vai funcionar?

Se a lei de madeira ilegal dos EUA não consegue funcionar nessas circunstâncias, então quando vai funcionar?

Existe um crescente reconhecimento de que a celebrada lei de madeira ilegal dos Estados Unidos não está funcionando. Em abril de 2022, um grupo de ONGs ambientais americanas e representantes da indústria madeireira publicaram uma carta conjunta pedindo por ações urgentes pelo governo dos EUA para aprimorá-la. Os signatários recomendaram financiamento adicional para aplicação, apoiado por um novo compromisso político da Casa Branca de dar prioridade à sua implementação de forma aprimorada.

É um sinal positivo o fato de que grupos ambientalistas nos EUA estejam cientes da necessidade de melhorar a lei. Suas recomendações devem ser executadas com urgência. Mas mesmo que sejam, isso terá um efeito limitado, a menos que um problema mais profundo também seja reconhecido e abordado. Isto é que o Lacey Act, tal como está, se baseia em uma má-compreensão fundamental da natureza do problema que ele deveria resolver.

Do jeito que está, as autoridades dos EUA só agirão quando puder ser provado, além de qualquer dúvida razoável, que as leis foram violadas no país de origem e que essas violações legais se aplicaram a produtos específicos em uma determinada remessa. Devido à natureza da extração ilegal de madeira e de seu comércio associado, esse padrão é quase impossível de ser cumprido.

Apenas um número muito pequeno de ilegalidades pode ser prontamente comprovado pelas autoridades americanas

Como explicado acima, quase toda a madeira extraída ilegalmente é lavada em suprimentos legais muito antes de ser exportada. Às vezes, é lavada antes mesmo de a árvore atingir o solo. É quase inédito que o governo de um país fornecedor reconheça a madeira para exportação como tendo sido adquirida ilegalmente e, em tais casos, as autoridades normalmente atacariam antes que ela partisse, tornando desnecessária a ação nos EUA. Apenas um número muito pequeno de tipos de ilegalidade pode ser prontamente comprovado pelas autoridades dos EUA, como a declaração incorreta de espécies. Mas tais declarações errôneas não ocorrem na grande maioria dos casos em que madeira de origem ilegal entra no país. Não há evidências de que a Indusparquet tenha declarado incorretamente qualquer madeira que vende.

Este problema já foi reconhecido e abordado em outros lugares. As proibições de importação ilegal de madeira na União Europeia e no Reino Unido estão associadas a um requisito paralelo separado para que os importadores pratiquem 'due diligence', ou seja, que façam verificação de conformidade, reduzindo o risco de obter madeira de origem ilegal a um nível insignificante. As violações deste requisito são uma ordem de mais fácil para as autoridades provarem. Fundamentalmente, inverte o ônus da prova. Para países e espécies fornecedores de alto risco, o ônus é do importador demonstrar que a madeira é legal. Embora algo equivalente, chamado 'due care' ou 'devido cuidado', seja mencionado na lei Lacey Act, este é apenas em relação ao nível de penalidades que uma empresa pode esperar, se – e somente se – for comprovado pela primeira vez que importou madeira ilegal.

A mesma lição também parece ter sido aprendida pelos legisladores por trás da nova Lei FLORESTA (Forest Act), atualmente em tramitação no Congresso. Ao tentar deter a importação de commodities agrícolas como carne bovina e soja ligadas ao desmatamento ilegal, a lei difere crucialmente do Lacey Act ao incluir um requisito de cuidado devido e rastreabilidade que é separado e adicional à própria proibição. Isso é vital para a potencial eficácia de qualquer lei e deve ser apoiado quando chegar a votação. Mas a lei, se aprovada, criará um padrão duplo. Para commodities agrícolas originárias de países de origem de alto risco, o ônus da prova recairá sobre as empresas. Para a madeira, permanecerá nas mãos das autoridades dos EUA. Eles continuarão a ter não uma, mas as duas mãos amarradas em seus esforços para tornar a lei efetiva.

A nova lei FLORESTA vai reverter o ônus da prova, que recairá sobre as empresas

Os legisladores americanos devem agir para resolver essa inconsistência.

Isso não quer dizer que a ação também não seja necessária em outros mercados consumidores. Embora a União Europeia seja mais capaz de agir devido ao desenho de sua própria lei de madeira ilegal, a região não está conseguindo implementá-la, como demonstram suas importações contínuas da Indusparquet.

Enquanto isso, as empresas envolvidas nos setores relevantes, incluindo importadores mas também financiadores, devem considerar não apenas as implicações legais de suas atividades, mas também as morais. Eles devem se recusar a aceitar madeira do Brasil a menos que evidências independentes e suas próprias auditorias de campo e de cadeia de suprimentos possam realmente eliminar o risco associado a ela. Eles não podem confiar nos documentos do governo brasileiro para fazer isso por eles, muito menos nas promessas feitas por empresas como a Indusparquet. Ao decidirem aceitar madeira brasileira sem verificar esses pontos, esses importadores também poderão entrar no grupo nefasto de 'intermediários', tão cúmplices quanto os verdadeiros 'intermediários' descritos neste relatório e envolvidos na destruição das florestas do Brasil e, consequentemente, nas terríveis implicações globais que isso traz.

Setembro de 2022

Créditos

Pesquisa: Earthsight / Mongabay

Ilustração da capa e capítulos: Samuel Bono

Imagens de drone da sede da Indusparquet em Tietê, São Paulo. Fonte: Earthsight

Mapas: @FlavitoReis

Montagem de depoimentos colhidos pela justiça do Paraná. De cima para baixo: Aleixo, Baggio, Puzyana, Granatyr, e Faria. Fonte: Tribunal de Justiça do Paraná

Montagem de depoimentos colhidos pela justiça do Paraná. Fonte: Tribunal de Justiça do Paraná

Ilustração do Cristo Redentor: RVLT's Dirk Wright para a Earthsight

Foto de sessão do STF. Fonte: Agência Brasil (licença CC BY 3.0 BR)

Imagens de satélite: Landsat / Copernicus

Foto de sessão no Congresso dos Estados Unidos. Fonte: Mark Reinstein / Shutterstock

Lista completa de referências aqui